A lógica da crença.

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Por Renato César


Roy Ingle, em seu artigo A Lógica da Descrença, cuja tradução pode ser encontrada aqui, lança algumas questões a respeito da lógica da doutrina calvinista. Os questionamentos são de fato relevantes e merecem esclarecimento.

Perguntas de Roy Ingle:

1) Como pode algum calvinista genuíno dizer que eles uma vez estavam em seus pecados até que colocaram a fé salvadora em Jesus, uma vez que Jesus morreu pelos seus pecados (todos eles?) 2000 anos atrás? Se Jesus morreu e sua expiação garantiu a salvação dos eleitos, então segue logicamente que todos os pecados dos eleitos foram colocados em Cristo e todos os eleitos de Deus foram salvos na cruz. Dessa forma os eleitos, todos conhecidos por Deus desde a fundação do mundo, são vistos como salvos na cruz. 
2) Mas, então, por que chamar as pessoas ao arrependimento? Por que dizer às pessoas para elas abandonarem os seus pecados pelos quais Jesus já pagou e já assegurou a sua eterna salvação? Como podemos exigir um duplo pagamento pelos pecados, e o pecado pode ser legitimamente chamado pecado se de fato a pessoa já foi perdoada de todos os seus pecados na cruz? 

Antes de responder às perguntas acima, quero registrar meu respeito por aqueles que estão envolvidos com o supracitado site, desde seus autores até aqueles que contribuem para sua manutenção de alguma forma. Não somos inimigos, mas irmãos, e apesar de nossas diferenças creio firmemente que compartilhamos da mesma fé em Cristo.

O autor faz um apelo à lógica para derrubar o argumento calvinista. Esse é um caminho muito bom a se seguir, pois ajuda a esclarecer os pressupostos que estão por trás de cada afirmação calvinista. Na verdade, só posso falar inteiramente por mim. Mesmo assim, creio que estarei representando a muitos que compartilham da minha visão, bem como poderei expor alguns dos fundamentos que, a meu ver, devem ser estabelecidos antes de se discutir a natureza do sacrifício de Cristo.

Primeiramente, precisamos entender que Deus é um ser atemporal. Logo, suas decisões podem perfeitamente ter sido tomadas antes que o tempo fosse por ele trazido à existência. Defendo essa ideia pois Deus não precisa aguardar o desenrolar da história do universo para tomar suas decisões, visto que são suas próprias decisões que determinam a história. Além disso, sendo Deus onisciente, ele pode contemplar nosso futuro. Se ele pode fazer isso, e como nada no futuro existe sem que Deus o tenha planejado, então podemos concluir que ele tomou todas as suas decisões em algum ponto na eternidade, antes que tudo que existe viesse a existir.

Mas esse entendimento não basta. Precisamos compreender também que Deus executou todas as suas decisões na eternidade, visto que a execução é uma consequência óbvia do planejamento. Se Deus tem tudo planejado, é lógico pensar que ele tenha também executado na eternidade todas as ações necessárias à implementação de seu planejamento. Falar em consequência pode, entretanto, trazer uma concepção cronológica equivocada dos atos divinos. Lembremo-nos de que o tempo é uma criação divina, e obviamente não existia quando Deus o planejou e o criou. Mas não podemos falar fora destes termos porque, ao contrário do que ocorre com Deus, o tempo nos limita.

Devemos também ter em mente que quando falamos em eternidade a ideia que se deseja exprimir não é apenas que Deus existia antes da criação do tempo. Na verdade, Deus está além do tempo. Assim como eu e você, o tempo e o espaço são criações divinas, e não podem, por isso, contê-lo e muito menos limitá-lo.

Feitas essas considerações, passemos a responder aos questionamentos de Roy Ingle. Pode-se perceber que todas as perguntas feitas pelo autor sugerem que o calvinismo é incoerente do ponto de vista do tempo. De fato, seria se o tempo fosse um fator limitante para Deus. Mas já vimos que não é. Deus já tomou e executou todas as suas decisões na eternidade, de modo que, dentro da história em que estamos inseridos, a seu tempo cada uma de suas decisões executadas concretizam-se, tornando-se manifestas no universo. Podemos afirmar, inclusive, que o sacrifício de Cristo na cruz foi somente a concretização, dentro da história do universo, de uma decisão que Deus tomou na eternidade.

Uma ilustração pode nos ajudar a entender melhor a atuação divina. Imagine alguém que escreve uma mensagem e programa o celular para enviá-la uma hora mais tarde. A decisão de escrever a mensagem e sua execução ocorrem num dado momento, mas a mensagem só chega efetivamente a seu destinatário, tornando-se manisfesta para ele, uma hora depois. De forma similar, as decisões divinas podem perfeitamente ter sido executadas na eternidade mas apenas se concretizarem em algum momento da história.

Cristo morreu pelo eleitos há dois mil anos, mas seu sacrifício não precisa ter efeito concreto na vida de cada pessoa no mesmo momento em que o sacrifício ocorre. Se assim fosse, que se diria dos que viveram antes de Cristo? Seu sacrifício não serviria para estes? Ou seu sacrifício somente surtiria efeito nos que viveram séculos antes de Cristo a partir do evento da cruz em diante? Claro que não! O sacrifício de Cristo tem efeitos que superam os limites impostos pelo tempo. Os atos de Deus que nos são manifestos, apesar de se efetivarem em um determinado momento da história, não estão limitados por ela, visto que Deus já havia decidido e executado seu propósito na eternidade. Seus efeitos atravessam passado, presente e futuro.

Tal compreensão de como Deus age e se move no tempo ajuda-nos compreender o porque de em At 18:9,10 o Senhor anunciar a Paulo que ainda tem muito povo na cidade em que Paulo está. Como Deus poderia ter ali um povo que ainda não estava convertido ao evangelho? A explicação mais aceitável que podemos ter é que Deus não está inserido no tempo da forma que estamos.

Além do exposto, Roy Ingle parece esquecer-se completamente de que a Bíblia vincula a aplicação de todas as promessas divinas que dizem respeito à salvação ao ato de crer (At 10:43; 13:36; 16:31), o que não significa que Deus já não tenha se decidido pelos salvos muito antes disso. Até mesmo arminianos tem que concordar com este argumento, visto que postulam que Deus, em sua onisciência, elege os salvos segundo a previsão daqueles que crerão no evangelho. Logo, segundo a lógica de Roy Ingle, como pode alguém ser eleito estando ainda em pecado, visto que somente crerá no futuro? Novamente, o problema surge a partir de uma compreensão equivocada da natureza divina e sua atuação.

Nós calvinistas cremos que Cristo sacrificou-se substitutivamente por cada um dos eleitos. Ele alcançou a cada um de modo específico, pagando preço de sangue. Os efeitos de seu sacrifício tornam-se concretos na vida de cada um dos eleitos em diferentes momentos da história, segundo o propósito divino, apesar de o ato haver sido executado há dois mil anos, assim como demonstrei no exemplo do celular. Deus não precisa estar executando cada um de seus decretos no exato momento em que estes se tornam efetivos, gerando consequências temporais. Isso seria limitar a ação de Deus ao tempo, sua própria criação. Assim, apesar das decisões divinas se consumarem em algum ponto do espaço e do tempo, ele optou, na eternidade, por somente aplicar o sacrifício de Cristo aos eleitos no momento da conversão, dentro do tempo, quando estes são regenerados pela obra do Espírito Santo em sua vidas.

O fato de um eleito nascer em estado de pecado, então, não significa que durante o intervalo de tempo até sua conversão ele tenha estado fora do alcance do sacrifício de Cristo, pois na eternidade todos os atos divinos já foram consumados, da mesma forma que o fato de um eleito ser ainda um incrédulo não implica que ele não tenha sido eleito ainda. Em ambos os casos, Deus já decidiu e executou sua vontade na eternidade, de forma que os efeitos da vontade de Deus apenas nos são manifestos em um dado momento histórico, a saber, a partir do momento em que o pecador crê.

Todas as perguntas, por decorrerem dessa concepção limitada que o autor parece ter de Deus, recebem a mesma resposta. Ainda assim, deve-se acentuar que o calvinista chama o pecador ao arrependimento, primeiramente, porque isso glorifica a Deus, e também porque essa foi a forma deixada por nosso Senhor para que Deus agisse na vida de seus eleitos.

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Sobre o autor: Cristão reformado, formado em administração de empresas e teologia, membro da IPB - Fortaleza/CE. 
Artigo enviado por e-mail. 
Contatos com o autor: renatocesarmg@hotmail.com
Divulgação: Bereianos
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