A obra de Deus em nossa obra

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Por Abraham Kuyper


O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo (1Ts 5:23)

A diferença entre santificação e boas obras precisa ficar bem entendida.

Muitos confundem as duas, e creem que santificação significa viver uma vida honrável e virtuosa; e, uma vez que isto é o mesmo que boas obras, a santificação, sem a qual nenhum homem verá a Deus, é tomada no sentido de um sincero e diligente esforço para fazer boas obras.

Mas este raciocínio é falso. A uva não deve ser confundida com a vinha, o relâmpago com o trovão, o nascimento com a concepção, não mais do que santificação com boas obras. A santificação é o grão, a semente da qual germinarão o caule e folhas das boas obras; mas, isto não identifica o grão com o broto. Aquele encontra-se no solo e através de suas fibras se agarra às raízes internamente. O último dispara do solo, externamente e visivelmente. Assim, a santificação é o implantar do germe, da disposição e da inclinação, os quais produzirão a florada e o fruto de uma boa obra.

Santificação é obra de Deus em nós, através da qual Ele concede aos nossos membros uma disposição santa, enchendo-nos interiormente com regozijo na Sua lei com repugnância ao pecado. Mas boas obras são atos de homem, que brotam desta disposição santa. Por conseguinte, a santificação é a fonte de boas obras, a lâmpada que brilhará com a sua luz, o capital do qual elas são o dividendo.

Permita-nos repetir: Santificação é uma obra de Deus; boas obras são de homens. A santificação opera internamente; boas obras são externas. A santificação comunica algo ao homem, as boas obras tiram algo dele. A santificação força a raiz dentro do chão, as boas obras forçam o fruto para fora da árvore frutífera. Confundir estes dois faz as pessoas se extraviarem.

O Pietista diz: A santificação é obra do homem; não se pode insistir nisso com ênfase suficiente. Trata-se do nosso melhor esforço para sermos santos. E o Místico mantém: Nós não podemos fazer boas obras, e não podemos insistir nelas, pois o homem é incapaz; só Deus pode operá-las nele, independentemente dele.

Naturalmente, ambos estão igualmente errados e não estão de acordo com a Escritura. O primeiro, ao reduzir a santificação a boas obras, tira-a das mãos de Deus a coloca sobre os homens, que nunca as podem executar; e o último, em fazendo as boas obras tomarem o lugar da santificação, libera o homem da tarefa que lhe foi designada e clama que Deus a executará. Ambos erros devem ser combatidos.

Tanto a santificação como as boas obras devem ser reconhecidas. Ministros da Palavra, e através deles o povo de Deus, devem entender que a santificação é um ato de Deus, que Ele executa no homem; e que Deus ordenou ao homem fazer boas obras para a glória do Seu nome. E isto terá efeito duplo: (1) O povo de Deus reconhecerá sua completa incapacidade para receber uma disposição santa que não seja como uma dádiva da graça livre, e então eles sinceramente orarão por esta graça. (2) Eles orarão para que os Seus eleitos, nos quais esta obra já foi operada, possam mostrá-la adiante, em obras que glorifiquem a Deus: ― assim como nos escolheu nEle (Jesus Cristo), antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante Ele; e em amor (Ef 1:4).

Embora esta distinção seja bem clara, duas coisas podem causar confusão: Primeira, o fato de que a santidade pode ser atribuída às próprias boas obras. Alguém pode ser santo, mas também fazer boas obras. A Confissão, falando de Jesus Cristo, diz das tantas obras santas, que fez por nós e em nosso lugar [Confissão de Fé Belga — Artigo 22 — A Justificação Pela Fé Em Cristo]. Assim é que a santidade pode ser externa e interna.

A passagem seguinte refere-se não a santificação, mas a boas obras: Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento... (2Pe 3:11); segundo é santo Aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento (1Pe 1:15); de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos, O adorássemos sem temor, em santidade e justiça perante Ele, todos os nossos dias (Lc 1:74-75).

Vemos que a palavra “santo” é utilizada em ambos, na nossa disposição interior e dos resultados dela, a vida exterior. Pode ser dito tanto da fonte como da água, que contém ferro; tanto da árvore como do fruto, que são bons; tanto da vela como da luz, que são claras. E, uma vez que santidade pode ser atribuída a ambas, a disposição interior e a vida exterior, santificação pode ser entendida como se referindo à santificação da nossa vida. Isto pode levar à suposição que uma vida exterior impecável é a mesma coisa que santificação. E se for assim, então santificação nada mais é senão uma tarefa imposta, e não um dom concedido. Deveria ser, portanto, cuidadosamente notado que a santificação da mente, das afeições e disposições não é obra nossa, mas sim de Deus; e que a vida santa a qual surge a partir daí é nossa.

Segunda, a outra causa de confusão são as muitas passagens da Bíblia que exortam e encorajam-nos a santificar, a purificar e a aperfeiçoar as nossas vidas, sim, mesmo a ― aperfeiçoar a nossa santidade (2Cor 7:1) e oferecermo-nos como servos para santificação (Ro 6:19); e a sermos isentos de culpa (1Ts 3:13).

E não devemos enfraquecer estas passagens, como os místicos o fazem; que dizem que estes textos significam, não que devêssemos oferecer os nossos membros, mas que Deus Ele Próprio tomará cuidado especial para que eles sejam assim oferecidos. Esses são truques que levam homens a brincar com a Palavra de Deus: É um abuso da Escritura, em benefício de introduzir as teorias próprias de alguém, sob a cobertura de autoridade divina. Os pregadores que, por medo de imporem responsabilidades sobre homens se abstêm da exortação, e cegam o fio dos mandamentos divinos por representa-los como promessas, tomam sobre si mesmos uma pesada responsabilidade.

Embora saibamos que nenhum homem jamais executou uma única boa obra sem Deus, quem nEle operou ambos, o querer e o executar; embora sinceramente concordemos com a Confissão, que diz que somos devedores a Deus pelas boas obras que fazemos e não Ele a nós... [Confissão de Fé Belga — Artigo 24 ― A Santificação — Referências Bíblicas: 1Co 1:30: 1Co 4:7; Ef 2:10]; e regozijamo-nos com o apóstolo no fato ― Pois somos feitura dEle, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas (Ef 2:10); ainda assim isto não nos absolve da tarefa de exortarmos os irmãos.

É um fato que apraz a Deus usar o homem como um instrumento, e pelo estímulo de sua própria capacidade e responsabilidade, incitá-lo à atividade. Um soldado da cavalaria, no campo de batalha, é bem ciente do quanto ele depende dos bons serviços do seu cavalo; e também de que o animal não pode correr a não ser que Deus o capacite. Sendo um homem reverente a Deus, ele ora antes de montar para que o Senhor capacite seu cavalo para trazer-lhe vitória; mas após haver montado, ele usa os joelhos e as esporas, relho e voz, ele usa toda sua força para fazer com que o cavalo faça o que deve fazer. E o mesmo é verdade na santificação. A menos que o sopro do Senhor mova-se no jardim da alma, nem uma folha pode mexer-se. Só o Senhor executa a obra, desde o início ao fim. Mas Ele a executa, parcialmente através de meios; e o instrumento escolhido muitas vezes é o próprio homem, que coopera com Deus. E a esta instrumentalidade humana a Bíblia se refere quando, com relação à santificação, ela nos admoesta a fazermos boas obras. Como na natureza Deus dá a semente e as forças e nutrientes no solo e na chuva e na luz do sol para o completo desenvolvimento natural do fruto da terra, enquanto que ao mesmo tempo Ele usa o agricultor para executar a Sua obra, assim também na santificação: Deus faz com que ela opera efetivamente, mas Ele usa o instrumento humano para cooperar consigo, assim como o serrote trabalha em conjunto com aquele que o maneja.

No entanto, isto não deveria ser entendido como se na santificação Deus Se houvesse feito absolutamente dependente do instrumento humano. Isto é impossível; por sua própria natureza o homem pode realmente danificar a santificação, mas nunca, jamais adicionalmente a ela. Por sua natureza ele a odeia e opõe-se a ela. Ademais, ele é absolutamente incapaz de produzir a partir da sua própria e corrupta natureza qualquer coisa que seja para o seu próprio crescimento em santificação. A cooperação instrumental do homem não deve, portanto, ser inapropriadamente tomada, por atribuir-se ao homem um poder para o bem, ou por obscurecer-se a obra de Deus.

É necessário uma cuidadosa discriminação. Aquele que implanta a disposição santa é o Senhor. Os esforços combinados de todos estes instrumentos não poderiam implantar uma única característica da mente santa, não mais do que todas as ferramentas juntas de um carpinteiro não podem produzir o rascunho do molde de um painel. O artista pinta sobre a tela; mas com todos os seus esforços, o seu cavalete, seus pincéis e sua caixa de tintas não podem nunca rascunhar uma única figura. O escultor molda a imagem; mas por si mesmos o seu cinzel, sua marreta e seu tamborete não podem nunca destacar uma única lasca do mármore rude. Gravar as características de santidade no pecador é uma obra do mais elevado sentido artístico, indizivelmente divina. E o Artista que a executa é o Senhor, como São Paulo O chama, O Artista e O Arquiteto da Cidade que tem fundamentos (Hb 11:10). O fato de que apraz ao Senhor utilizar-se de instrumentos para algumas partes da obra não concede aos instrumentos qualquer valor que seja, muito menos capacidade para alcançar qualquer coisa por si mesmos, sem o Artista. Ele é O único Operador.

Mas como Artista, Ele usa três instrumentos diferentes, a saber, a Palavra, Suas relações providenciais, e a própria pessoa regenerada.

1. A Palavra é um poder vital na Igreja, que penetra até ao ponto de dividir as juntas e tutano, e, como tal, é um instrumento divinamente decretado para criar impressões numa pessoa; e estas impressões são os meios pelos quais as inclinações santas são implantadas em seu coração.

2. Experiências de vida também nos causam impressões mais ou menos duradouras; e Deus usa estas também como instrumentos para criar disposições santas.

3. O terceiro instrumento refere-se ao efeito do hábito, do costume. Atos pecaminosos repetitivos fazem audacioso o pecador e criam hábitos pecaminosos; desta forma ele coopera para tornar-se um pecador ainda maior. Numa maneira similar o santo coopera para com a sua própria salvação, ao permitir que a disposição santa irradie-se em boas obras. O ato frequente de fazer o bem cria o hábito. O hábito gradualmente torna-se uma segunda natureza. E é esta poderosa influência do hábito, do costume, que Deus usa para ensinar-nos a santidade. Desta forma Deus pode fazer de um santo o instrumental na santificação de outro.

Um arquiteto constrói um palácio o qual o faz famoso, como um artista. É verdade que o contratante, uma pessoa importante no lugar, é quem erigiu a estrutura; mas o seu nome raramente é mencionado; toda a honra só é reservada para o arquiteto. Na santificação não é a Palavra por Si só que é efetiva, mas aquela Palavra manejada pelo Espírito Santo. Nem é só a experiência de vida, mas aquela experiência usada pelo Artista Santo. E nem tampouco é a pessoa regenerada que serve de exemplo e capataz, mas o Deus Triúno, glorioso, ao serviço de quem ele trabalha.


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Fonte: A Obra do Espírito Santo, Cultura Cristã, págs 493-497.
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Liberalismo moral: “O corpo é meu e faço dele o que eu quiser”

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Neste vídeo, Guilherme de Carvalho comenta sobre o liberalismo moral e a questão: "O corpo é meu e faço dele o que eu quiser". Assista:


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Sobre o autor: Guilherme de Carvalho é casado com Alessandra e pai de duas meninas: Ana Elisa e Helena. É formado pela Escola Superior de Teologia do Mackenzie, mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Foi professor de teologia por vários anos, e atualmente é pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L'Abri Fellowship Brasil.

Fonte: Ministério Tuporém
Imagem: Ministério Tuporém, adaptada para o blog Bereianos.
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Vivendo e testemunhando antiteticamente

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Por Prof. Herman Hanko


Ao olhar para o homem abençoado de Salmo 1:1, que "não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores", um leitor afirma: "Eu preciso compreender o 'seguir, imitar e assentar' que não devemos fazer com os ímpios... é aí que a 'teoria vira prática' em nosso testemunho diário. Onde se põe os limites nas relações de trabalho, com os vizinhos, etc?" 

Esta é uma boa pergunta que envolve diretamente a doutrina reformada da antítese: o intransponível abismo espiritual entre os ímpios e os filhos de Deus do pacto; o qual existe porque os ímpios são de seu pai, o diabo - cujas obras realizam - e o povo de Deus é regenerado e chamado a viver neste mundo pela graça, como filhos da luz e como aqueles que representam a causa do pacto de Deus neste mundo. 

A dificuldade reside no fato de que estamos no mundo, embora não sejamos do mundo, assim como Cristo diz (Cf. Jo 17:15-16). Nós nos deparamos com os incrédulos em todos os aspectos da vida. Ímpios e justos trabalham juntos no mesmo estabelecimento ou escritório. Ímpios e justos compram e vendem nas mesmas lojas. Ímpios e justos estão frequentemente relacionados uns com os outros, alguns em relações bem próximas, outros em relações mais distantes. 

O problema tem chamado a atenção dos teólogos por muitos séculos - e até milênios. A doutrina católica romana tem ensinado tradicionalmente que a separação do mundo é o caminho para o cristão manter a antítese. Não ter nada a ver com o mundo! Submeter-se à um mosteiro e ousar sair apenas à noite e somente quando absolutamente necessário, mas então fugir de volta para a segurança de uma cela a fim de que o contato com o mundo não o contamine. Esse é o caminho para a santidade. Os antigos anabatistas defendiam muito essa mesma ideia. 

Outros procuram resolver o problema, falando de uma "graça comum", que é dada a todos os homens, o que permite com que o cristão tenha comunhão com os do mundo e se envolva em esforços comuns com os homens ímpios. Enquanto os dois estiverem buscando os mesmos objetivos (o bem-estar do trabalhador, a erradicação do aborto, a batalha contra a homossexualidade, a superação da pobreza, etc), é permitido e até desejável cooperar no trabalho. 

A doutrina bíblica e reformada da antítese condena ambas as ideias e chama o povo de Deus para uma esfera maior de trabalho. A chave para a vida da antítese é o chamado para testemunhar sua fé no mundo. A própria antítese é fortemente estabelecida no Salmo 1, Deuteronômio 33:28, 2 Crônicas 19:2, 2 Coríntios 6:14 - 7:1 e muitas outras passagens similares. Mas o chamado do povo de Deus é também: "brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céu" - Mt 5:16. Na verdade, é neste ponto que a "teoria vira prática"

A liberdade cristã está envolvida aqui. Como alguém faz com que sua luz brilhe diante dos homens é certamente diferente para alguém que está no exército e alguém que vive com um cônjuge incrédulo. Com certeza a maneira com que um médico cristão deixa sua luz brilhar diante dos homens é diferente do chamado de quem trabalha em um ambiente onde a blasfêmia e a conversa torpe é comum. E cada um deve, por si mesmo, em sua própria posição e chamado, determinar como brilhará sua luz diante dos homens.

Primeiro, nunca, nunca participe com eles dos pecados da Babilônia (Cf. Ap 18:4); nunca compartilhe do mal. Não devemos compartilhar do mal com outros cristãos; nem em nossas vidas privadas, quando somente Deus pode ver o que estamos fazendo. Não devemos apenas recusar quando somos convidados, mas devemos explicar porque nós nos recusamos, apontando para a Palavra de Deus e seu chamado. 

Além disso, nossas boas obras devem ser constantes e visíveis. Nossas boas obras brilham diante dos homens quando nunca juramos, nunca profanamos o sábado [leia-se domingo, o Dia do Senhor], nunca falamos palavras torpes, nunca escarnecemos as autoridades. Nossas boas obras, brilham diante dos homens quando fazemos o que é certo: buscamos a bênção de Deus na hora das refeições - no trabalho também -, amamos nossas esposas e filhos, vamos à igreja no Dia do Senhor, estamos felizes e alegres mesmo na aflição e provação, falamos apenas palavras de interesse, simpatia, amor e confiança em Deus. Pedro nos lembra que, quando a nossa luz brilhar diante dos homens, eles nos perguntarão da esperança que há em nós. Quando o fazem, devemos estar prontos para dar uma boa defesa de nossa fé; Pedro a chama de apologia (Cf. 1 Pe 3:15). 

Isto significa que nós devemos estar sempre prontos e rápidos em falar da nossa fé e nossa esperança. Há realmente duas vertentes para isso: uma é que nós condenamos a maldade que é predominante ao nosso redor. Dizemos às pessoas que é pecaminoso usar o nome de Deus em vão e que Deus não julgará tal homem inocente. Defendemos a santidade do casamento e a pureza de vida e linguagem. Ao fazer isso, devemos chamar tais homens ao arrependimento e à fé em Cristo. Se amamos nosso próximo como a nós mesmos, então nós queremos que eles sejam salvos. A salvação vem através do arrependimento dos pecados e fé em nosso Senhor Jesus Cristo. 

Meu pai me contou de um cristão que se queixou de ser perseguido e, afinal, demitido por causa de seu testemunho. Ele trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial em uma linha de montagem que fazia tanques. Mas, quando pressionado, ele admitiu que andava para cima e para baixo na linha de montagem testemunhando a seus colegas de trabalho. Ele precisava ser advertido de que, antes de tudo, o seu testemunho deveria ser o de um trabalhador tão vigoroso quanto ele poderia ser. Sem isso o seu testemunho era uma farsa e ele ter sido demitido não era perseguição, mas o que ele merecia. No entanto, se a perseguição é o resultado do nosso testemunho, temos que suportá-la como sendo uma marca da escravidão a Cristo. 

Nosso testemunho não é uma constante disputa sobre religião, pois assim lançamos pérolas aos porcos (Cf. Mt 7:6). Mas não devemos ficar em silêncio quando devemos falar. Nossas obrigações em nosso chamado são cumpridas quando todos aqueles com quem entramos em contato sabem que servimos a Cristo e O amamos, sabem que nós acreditamos e vivemos de acordo com a Escritura, e sabem qual é a sua própria obrigação pessoal perante Deus.

Cada um deve fazer isso em seu próprio lugar e posição na vida. Cada um deve fazê-lo, assim como Pedro nos lembra, "com mansidão e temor" (Cf. 1 Pe 3:15-16). Cada um deve fazê-lo para que Deus seja glorificado, para que outros vendo nossas boas obras, glorifiquem nosso Pai celeste. 

O homem que anda em um restaurante perguntando a cada um dos clientes se ele é salvo, enquanto se recusa a ir à igreja e dar instrução piedosa a seus filhos, dá um mau testemunho e frequentemente faz mais mal para a causa de Deus do que o incrédulo. 

Devemos amar o nosso próximo; nosso próximo é aquele que está ao nosso lado e, por vezes, necessitado de nossa ajuda. Deus o colocou lá para que ele também venha a conhecer o seu chamado. Se no final ele se arrependerá do pecado ou não, é irrelevante; Deus tem o Seu propósito. O objetivo de tudo isso é que Deus seja glorificado e louvado, seja por meio de Sua obra salvífica ou Sua obra do justo castigo dos ímpios.


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Tradução: Thiago McHertt
Imagem: Fireland Missions, adaptada para o Blog Bereianos

Leia o PDF na íntegra em português: 
Antítese - Vivendo Piedosamente Numa Era de Impiedade

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A direita e a esquerda



Por Gene Edward Veith Jr.


Parte da dificuldade em reconhecer o fascismo é o pressuposto de que ele é conservador. Sternhell observou como o estudo da ideologia foi obscurecido pela "interpretação oficial marxista do fascismo". O marxismo define o fascismo como seu extremo oposto. Se o marxismo é progressivo, o fascismo é conservador. Se o marxismo é de esquerda, então o fascismo é de direita. Se o marxismo defende o proletariado, o fascismo defende a burguesia. Se o marxismo é socialista, o fascismo é capitalista.

A influencia da escola marxista distorceu seriamente nossa compreensão sobre essa questão. O comunismo e o fascismo foram marcas rivais do socialismo. Enquanto o socialismo marxista pregava a luta de classes internacional, o nacional-socialismo fascista promoveu um socialismo centrado na unidade nacional. Tanto comunistas como fascistas se opunham à burguesia. Ambos atacavam os conservadores. Ambos foram movimentos de massa, que tinham uma simpatia especial pela intelligenstia, pelos estudantes e pelos artistas, assim como pelos trabalhadores. Ambos eram favoráveis a governos fortemente centralizadores e rejeitavam a livre economia e os ideais da liberdade individual. Os fascistas não se viam como de direita nem como de esquerda. Eles acreditavam que constituíam uma terceira força, que sintetizava o melhor dos dois extremos. Há importantes diferenças e amargos antagonismos ideológicos entre o marxismo e o fascismo; mas sua oposição mútua não deveria disfarçar seu parentesco como ideologias socialistas revolucionárias.

Tampouco as figuras de linguagem como direita e esquerda ou construções artificiais como reacionários e radical deveriam obscurecer o modo de pensar que permeia um largo espectro de posições políticas e sociais. A metáfora de esquerda e direita que retrata as duas ideologias revolucionárias como opostos extremos é profundamente enganadora. Jaroslav Krejci mostrou a inadequação da "imagem unilinear" de esquerda vs. direita. Ele indica que a metáfora vem da arrumação dos bancos no parlamento francês depois da Revolução. Politicamente, os que ficavam sentados à direita eram favoráveis a um monarca absoluto. Economicamente, eles eram favoráveis aos monopólios do governo e a uma economia controlada. Os que se sentavam à esquerda eram favoráveis à democracia, à economia de livre mercado, e à liberdade individual.

Tal metáfora espacial correspondia bem à geometria cartesiana do Iluminismo e às opções políticas do século 18, mas não funciona como um modelo da política do século 20. Em termos do modelo original, os conservadores norte-americanos que almejavam menos governo e confiavam no livre mercado seriam de esquerda. Os liberais que pretendiam uma economia mais direcionada pelo governo seriam de direita. Liberal e conservador são em si mesos termos relativos - dependentes do que cada um tem de manter. Os liberais do século 19, com sua economia de livre mercado e resistência aos controles governamentais, são os conservadores do século 20.

Quando pensamos em alternativas socialistas, como Krejci nos mostra, os limites de esquerda e direita se tornam sem sentido. Os marxistas declaram a prática da economia controlada e têm um governo geral forte e autoritário com controles rígidos sobre suas populações. Eles deveriam se sentar na ala direitista do parlamento francês. Por outro lado, os marxistas são revolucionários e assim são certamente anti-conservadores. O socialismo fascista, apesar de suas diferenças com o marxismo, é semelhante a este quanto a uma economia controlada, um forte governo central e um controle rígido sobre o populacho e, ao mesmo tempo, cultural e intelectualmente radical. Entretanto, como Krejci, diz "apesar das muitas afinidades entre eles, os comunistas continuam a ser visto como de extrema esquerda e os nazistas como de extrema direita". Como resultados, aqueles que acham que estão sendo esquerdistas "politicamente corretos" acusam os conservadores de "direita" de estar sendo fascistas, mas não se lembram das tendências fascistas que eles mesmos têm.

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Fonte: VEITH Jr, Gene Edward. O fascismo moderno. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. págs.: 24,25
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A máscara cristã do dualismo

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Por  Thomas Magnum


As religiões de mistério são conhecidas por suas crenças dualistas. O dualismo é a teoria de interpretação que explica determinada situação ou âmbito em termos de dois fatores ou princípios opostos entre si. De modo geral, os dualismos são classificações duplas que não admitem graus intermediários. Basicamente existem três tipos de dualismo: o metafisico, o epistemológico e o religioso. Nesse artigo iremos nos ater ao último, veremos como muitas práticas religiosas de igrejas neopentecostais tem uma filosofia dualista que não condiz com a soberania do Deus revelado nas Escrituras. O dualismo religioso afirma que no mundo, há duas forças mutuamente hostis, sendo que uma delas é a origem de todo bem, e a outra, a origem de todo mal. O tipo de dualismo mais antigo é visto na antiga religião iraniana, geralmente associada ao nome de Zoroastro, em que Ahura Mazda e Arimânio representam a projeção para uma cosmologia do bem e do mal, respectivamente. O universo torna-se um campo de batalha [1].

Das religiões de mistério ao Cristianismo

Podemos realizar uma constatação histórica do dualismo presente tanto no antigo Egito, como nas crenças posteriores, na Grécia e em Roma. Essa involução posterior que chegou ao cristianismo medieval, levou o cristianismo a uma religião do medo que foi arraigada para manter a fidelização, tanto de monarcas como de plebeus. Com a reforma protestante, a ênfase teológica na soberania de Deus foi novamente esboçada na pregação e na pena dos reformadores. Ao seguirmos na história, chegando ao século XX, observamos o ressurgimento de filosofias neoplatônicas sobre o dualismo existencial, consequentemente isso desembocou na religião. Por isso vemos várias formas de dualismo impresso em muitas seitas [2].

Satanás tem poder sobre os crentes?

Tá amarrado, tá repreendido, quem nunca ouviu essas expressões ditas por alguém? Certa vez passava por uma rua e uma mulher que tinha em média trinta e oito anos, repreendia o diabo porque não estava conseguindo fazer uma ligação em seu celular. Em outra ocasião ouvi um testemunho de uma irmã que repreendeu o demônio que estava no cadeado do portão de sua casa. É comum ouvirmos tá amarrado, tá repreendido em nome de Jesus... , palavras mágicas como abracadabra se assemelham a esse processo de esconjurar o demônio. A origem ocultista da palavra abracadabra se dá por um encantamento medieval usado para curar doenças ou afastar problemas iminentes. Acreditava-se que a palavra era especialmente eficaz, quando inscrita num amuleto [3]. A prática de colocar o copo com água sobre a televisão ou rádio para que o “pastor” realize uma oração, amarre e determine,  são amuletos, ocultismo. Palavras usadas de formas mágicas, são amuletos. Não lemos na Bíblia Jesus ou os apóstolos amarrando demônio nenhum. Talvez alguém diga que Bíblia não proíbe, então, podemos fazer. A diferença entre o católico e o protestante é justamente essa, um católico dirá que a Bíblia não fala nada contra venerarmos os santos do passado, logo, podemos venerá-los. O protestante afirma, a Bíblia não ordena a veneração dos santos, logo, não podemos fazer [4].  

Deus é o regente do universo

A Bíblia nos dá abundante prova que Deus é soberano, e que Ele governa todas as coisas. "Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco", I Tessalonicenses 5.18. Observe nesse texto que, tudo que acontece só acontece se for da vontade de Deus. "E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito"Romanos 8.28. E ainda observamos nas palavras de João, "Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não peca; mas o que de Deus é gerado conserva-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca", I João 5.18. Claro que não ignoramos que o Diabo vem para matar, roubar e destruir, mas, somos guardados por Deus; "Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu nome", João 17.12. "fostes selados com o Espírito Santo da promessa", Efésios 1.13. Mesmo as atuações de Satanás são controladas por Deus, ele não tem o mesmo poder que Deus tem. Satanás é criatura, Deus é criador. Veja a história de Jó, Satanás foi a Deus e quis provar Jó, mas, na realidade era o Diabo que estava sendo provado, Deus sabia quem era o Diabo e quem era Jó: "E disse o Senhor a Satanás: Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal", Jó 1.8. "Ele é o que remove os montes, sem que o saibam, e o que os transtorna no seu furor", Jó 9.5. "Abaixa, ó Senhor, os teus céus, e desce; toca os montes, e fumegarão". Salmos 144.5. "Deus domina grandiosamente em sua criação; Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Isaías 46.9. Confiai no SENHOR perpetuamente; porque o SENHOR DEUS é uma rocha eterna". Isaías 26.4. 

Os decretos e a Providencia de Deus 

Observamos na Confissão de Fé de Westminster: 

Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.
Ne 9.6; Sl. 145.14-16; Dn 4.34-35; Sl 135.6; Mt 10.29-31; Pv 15:3; II Cr 16.9; At 15.18; Ef. 1.11; Sl 33.10-11; Ef. 3.10; Rom 9.17; Gn 45.5.
Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente.
Jr 32.19; At 2.13; Gn 8.22; Jr 31.35; Is10:6-7. 
Na sua providência ordinária Deus emprega meios; todavia, ele é livre para operar sem eles, sobre eles ou contra eles, segundo o seu arbítrio.
At 27.24, 31; Is 55.10-11; Os 1.7; Rm 4.20-21; Dn 3.27; Jo 11.34-45; Rm 1.4. 
(CFW, Cap. V - I, II e III.)  

Conclusão 

Defender essa espécie de dualismo cristão, no que diz respeito a um Deus que mede forças com Satanás é heresia. Deus é soberano e tem o controle de tudo em suas mãos. A igreja é de Deus, Ele comprou com seu próprio sangue (Atos 20.28). O que necessitamos mais do que nunca é discernimento Bíblico, conhecimento da Sagrada Escritura, voltemos ao Evangelho. 

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Notas:
[1] Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja cristã, Vida Nova - Walter A. Elwell
[2] Dicionário de Religiões, Crenças e Ocultismo, Vida- George Mather e Larry Nichols
[3] Dicionário de Religiões, Crenças e Ocultismo, Vida- George Mather e Larry Nichols
[4] O Culto segundo Deus, Vida Nova- Augustus Nicodemus Lopes 
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Por que estudar ética?



por John Frame 

Devemos estudar ética pela seguintes razões, pelo menos:

Os servos de Jesus são aqueles que têm seus mandamentos e os guardam (Jo 14.21). Jesus repete isso várias vezes: "Se me amais, guardareis os meus mandamentos" (Jo 14.15; cf. v. 21,23; 15.10; 1Jo 2.3-5; 3.21-24; 5.3). O "novo mandamento" de Jesus é "que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros" (Jo 13.34). O amor deve ser a marca da igreja, distinguindo-a do mundo: "Nisto conhecereis todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros" (v.35). Isso não quer dizer que somos salvos pelas obras, pela obediência ou por guardar os mandamentos. Significa simplesmente que, se desejamos ser discípulos de Jesus, devemos nos dedicar a fazer boas obras (Tt 3.8; cf. Mt 5.16; Ef 2.10; 1Tm 2.10; 5.10; 6.18; 2Tm 3.17; Tt 2.7,14; 3.14; Hb 10.24; 1Pe 2.12). Se temos de praticar boas obras, devemos saber quais obras são boa e quais são más. Portanto, precisamos estudar ética.

Um dos propósitos da Escritura é incentivar o comportamento ético. A conhecida passagem de 2Tm 3.16-17 afirma: "Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Observe o foco ético aqui. Deus inspirou as palavras das Escrituras para que possamos ser treinados na justiça, a fim de que estejamos habilitados pra toda boa obra. Obviamente, a Escritura tem também outros propósitos. Muitos já enfatizaram que ela testemunha de Cristo, e ela faz isso (Lc 24.27; Jo 5.39). Mas a Escritura apresenta Cristo como aquele que nos qualifica para sermos luzes no mundo (Mt 5.14). Consequentemente, grande parte da Escritura é dedicada a definir e motivar nossas boas obras.

Em certo sentido, tudo na Bíblia é ético. Mesmo quando a Escritura expõe proposições doutrinárias, ela as apresenta como proposição que devem ser cridas. Esse dever é um dever ético. De fato, todo o conteúdo da Escritura deve ser crido e gerar ação. A Bíblia inteira trata de ética. E, é claro, a Bíblia não é apenas ética, mas também narrativa, e para compreender a história da redenção precisamos recorrer a tudo na Escritura. Então, toda a Bíblia é tanto narrativa quanto ética. Do mesmo modo, a Bíblia inteira é verdade doutrinária, sabedoria, evangelismo, apologética, e assim por diante. Porém, não teremos entendido a Bíblia até termos entendido sua ética.

Esse é outro modo de dizer, como fiz em DCD [1], que a teologia é "a aplicação da Palavra de Deus, pelas pessoas, a todas as áreas da vida". Qualquer estudo ou ensino da Bíblia é uma tentativa de responder às questões humanas e satisfazer necessidades humanas. Essas questões ou necessidades podem ser relativamente teóricas (p. ex., "Qual é o significado de ratzah no sexto mandamento?") ou relativamente práticas (p. ex., "Quando devo desligar os aparelhos que mantêm o meu pai moribundo com vida?"). Porém, são todas práticas no sentido de que lidam com questões e necessidades humanas. Nesse sentido, toda teologia é voltada para as pessoas para ajuda-las a pensar e a viver para a glória de Deus. Assim, toda teologia envolve ética. 

O estudo da ética é extremamente importante para nosso testemunho ao mundo. Vivemos numa era em que as pessoas estão muito preocupadas com a ética. Todos os dias a mídia traz à mente questões de guerra e paz, meio ambiente, poderes públicos, aborto e eutanásia, pesquisa genética, etc. Muitas pessoas parecem ter certeza das respostas a essas questões éticas. Porém, quando você investiga profundamente as posições delas, descobrirá que essa convicção é geralmente baseada em pouco mais que consenso partidário ou sentimentos individuais. Todavia, a Bíblia realmente nos dá uma base para julgamentos éticos: a revelação do Deus vivo. Portanto, as discussões sobre questões éticas abrem uma larga porta para o testemunho cristão. 

As pessoas estão muito mais dispostas a discutir ética do que provas teístas ou mesmo "argumentos transcendentais". Hoje em dia, a filosofia não é algo excitante; muitos não querem sequer ouvir testemunhos pessoais ou o simples evangelho. Mas eles se importam sobre o certo e o errado. Por isso, os cristãos que conseguem falar sobre ética de modo convincente têm uma grande vantagem apologética e evangelística.

É verdade que hoje muitos não querem ouvir esse testemunho. Eles consideram o cristianismo apenas uma posição "religiosa" e, consequentemente, algo que não deve ser discutido na esfera pública. No entanto, esse ponto de vista é completamente absurdo e essa irracionalidade precisa ser questionada. Por que posições religiosas devem ser excluídas do debate, especialmente considerando que posições seculares não têm conseguido apresentar uma base convincente para julgamentos éticos? Como demonstrarei neste livro, as principais correntes de pensamento dos séculos 20 e 21 faliram, confessadamente incapazes de fornecer qualquer base para distinção entre o certo e errado. Creio que muitas pessoas hoje estão famintas por respostas e desejosas de olhar até mesmo para posições religiosas para encontra-las.

Também argumentarei que toda ética é religiosa, mesmo quando tenta ser secular. No final, toda ética pressupõe valores definidos. Requer sujeição a alguém ou a algo que exige devoção e governa todos os pensamentos. Esse tipo de sujeição não se distingue da devoção religiosa, mesmo não envolvendo práticas litúrgicas. Portanto, a linha entre a ética religiosa e a secular é distinta; é arbitrário usar essa distinção para determinar quem está qualificado para participar de uma conversa sobre ética.

Porém, mais importante do que a habilidade de conversar sobre ética é a habilidade de viver seus princípios. Isso é verdade acerca do nosso testemunho ao mundo. As pessoas veem como vivemos. Mesmo cristãos que são desarticulados ou pouco eloquentes podem exercer um grande impacto por meio de suas ações. É isso que Jesus comenta acerca da importância das nossas obras para o nosso testemunho: "Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus" (Mt 5.16).

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Nota:
[1] DCD: Doutrina do Conhecimento de Deus. São Paulo: Editora Cultura Cristã. 2012

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Fonte: FRAME, John. A Doutrina da Vida Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013. Pags. 30-32
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Sobre os "Iluminados" de Hebreus 6




Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima


O texto em foco diz:

É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia. Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada.” (Hebreus 6.4-8)

A primeira observação que deve ser feita a respeito de Hebreus 6.4-8, é que, trata-se, nos dizeres de Geerhardus Vos, de uma “difícil e importante passagem” sobre a aliança de Deus com o seu povo.[1] A razão dessa dificuldade está no fato de o autor da epístola mencionar especificamente o aspecto fenomenológico da religião nessa perícope.[2]

Os “iluminados” de Hebreus 6.4-8 eram pessoas que “abandonaram esta assembleia dos santos”.[3] Eram pessoas não-regeneradas, não-eleitas, incrédulas que durante algum tempo fizeram parte de uma igreja visível, mas que apostataram. Muito se questiona acerca de como pessoas ímpias puderam “provar” de vários benefícios, como por exemplo:

1) do dom celestial; 2) da participação comum do Espírito Santo; 3) da boa palavra de Deus; e 4) dos poderes do mundo vindouro. Como tais pessoas puderam desfrutar, em alguma medida, de bênçãos destinadas àqueles que foram os beneficiários diretos do sacrifício substitutivo de Cristo?

D. Mathewson, no seu artigo intitulado Reading Heb 6:4-6 in Light of the Old Testament, lança luz sobre esse questionamento, ao afirmar que, “a linguagem do autor em 6.4-6 é colorida por referências do AT que aludem e ecoam como citação direta”.[4] De forma específica, Mathewson sugere que a referência àqueles que foram “iluminados” lembra a coluna de fogo que alumiou os israelitas através do deserto.[5] Algumas passagens veterotestamentárias podem demonstrar o ponto. Neemias 9.12,19 diz o seguinte:

Guiaste-os, de dia, por uma coluna de nuvem e, de noite, por uma coluna de fogo, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir [...] Todavia, tu, pela multidão das tuas misericórdias, não os deixaste no deserto. A coluna de nuvem nunca se apartou deles de dia, para os guiar pelo caminho, nem a coluna de fogo de noite, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir.

O “dom celestial” lembra o dom celestial do maná, que foi dado por Deus ao seu povo quando este se encontrava no deserto (Êxodo 16.15). Em Neemias 9.15 é dito que o pão celestial foi dado aos israelitas “na sua fome”. Por sua vez, a referência àqueles que “se tornaram participantes do Espírito Santo” ecoa a experiência dos peregrinos do deserto, que “tinham extensiva interação com o Espírito de Deus”[6], como é testemunhado em Neemias 9.20: “E lhes concedeste o teu bom Espírito, para os ensinar; não lhes negaste para a boca o teu maná; e água lhes deste na sua sede”.

Após considerar os elementos descritos em Hebreus 6.4-6, Mathewson conclui: “O autor não está apenas aludindo a textos fragmentados e a vocabulário isolado para apresentar uma retórica colorida, mas por aludir a textos que pertencem a uma enorme matriz de idéias ele está evocando o contexto inteiro e história da experiência de Israel no deserto”.[7]

Quando se leva em consideração que os destinatários dessa epístola eram cristãos judeus, essa interpretação se mostra bastante plausível. O autor de Hebreus utiliza a linguagem do Antigo Testamento para descrever um abandono doloroso de uma congregação por parte de algumas pessoas.

Dessa forma, a iluminação recebida, o dom celestial provado e o Espírito compartilhado se mostram bênçãos da graça comum de Deus destinada a pessoas ímpias ou, nas palavras de Charles Hodge, “influências do Espírito concedidas a todos os homens”.[8] Tais pessoas, “tiveram um claro entendimento do juízo de Deus sobre o mundo, das promessas de Deus, o desvendar do mundo futuro; tiveram uma clara distinção do juízo, bem como provaram dos milagres da era apostólica”, afirma o teólogo genebrino Matthew Poole.[9]

No seu comentário a respeito do versículo 4, João Calvino endossa a opinião de que mesmo os réprobos recebem algumas chispas da luz divina:

Mas aqui surge uma nova questão, como pode que aqueles que fizeram tal progresso venham a apostatar depois de tudo? Pois Deus, isso pode ser dito, não chama ninguém eficazmente a não ser os seus eleitos, e Paulo testifica que eles realmente são seus filhos e que são guiados por seu Espírito (Romanos 8.14) e ele nos ensina que, é um seguro penhor de adoção quando Cristo nos faz participantes do seu Espírito. O eleito também está além do perigo da apostasia final; pois o Pai que o elegeu para ser preservado em Cristo é maior do que tudo, e Cristo promete vigiar por eles de maneira que nenhum pereça. A tudo isso, eu respondo que Deus, de fato, favorece apenas os seus eleitos com o Espírito de regeneração e que, por isso eles são distinguidos dos réprobos; pois eles são renovados segundo a sua imagem e recebem a seriedade do Espírito na esperança da herança futura, e pelo mesmo Espírito o Evangelho é selado em seus corações. Mas eu não posso admitir que tudo isso seja alguma razão pela qual Ele não conceda também aos réprobos algum sabor da sua graça, que Ele não irradie suas mentes com algumas chispas da sua luz, ou não lhes dê alguma percepção da sua bondade, e de alguma maneira grave sua palavra em seus corações. De outra forma, o que viria a ser a fé temporal mencionada em Marcos 4.17? Portanto, existe algum conhecimento mesmo nos réprobos, o qual posteriormente vem a desvanecer, porque não possui raízes suficientemente profundas, ou porque elas murcham ao serem sufocadas.[10]

O que pode ser apreendido a partir desse comentário é que, de acordo com Calvino, bênçãos fluidas da obra expiatória de Cristo e destinadas diretamente aos eleitos e salvos como, por exemplo, a iluminação, o dom celestial da Palavra e a comunhão no Espírito, podem ser destinadas, ainda que de forma indireta a pessoas ímpias e incrédulas. Como Grudem acertadamente frisa, “a graça especial, que Deus dá aos salvos, leva a maior parte das bênçãos da graça comum aos incrédulos que vivem no campo de influência da igreja”.[11]

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Notas:

[1] Geerhardus Vos. The Teaching of the Epistle to the Hebrews. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956. p. 28.
[2] Ibid.
[3] Moisés Bezerril. A Queda dos Iluminados de Hebreus 6.4-6. p. 16. Acessado em 18/08/2011.
[4] D. Mathewson. “Reading Heb 6:4-6 in Light of the Old Testament”, In: Westminster Theological Journal. Ed. 61. 1999. p. 214.
[5] Ibid. p. 216.
[6] Ibid. p. 217.
[7] Ibid. p. 223.
[8] Charles Hodge. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 981.
[9] Matthew Poole. A Commentary on the Whole Bible: Matthew – Revelation. Vol. 3. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 2003. p. 737.
[10] John Calvin. Commentary on Hebrews. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2000. p. 94. Acessado em 25/Ago/2011. 
[11] Wayne Grudem. Teologia Sistemática. p. 554.

Sobre o autor: Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima é pastor efetivo da Igreja Presbiteriana do Cruzeiro do Anil, em São Luís-MA. 


Fonte: Perfil do autor no Facebook
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Apostolado no Brasil - Augustus Nicodemus

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A palestra do Dr. Augustus Nicodemos versou sobre o movimento apostólico evangélico brasileiro e teve por base a pesquisa para um livro que o autor lança ainda este ano sobre o tema. Dr. Nicodemus versa sobre o uso do termo "apóstolo" desde a sua origem e os diferentes entendimentos dados ao conceito ao longo da história e os movimentos heréticos que algumas destas falácias iniciaram. A palestra culmina com a análise do presente fenômeno apostólico evangélico brasileiro.

Entre os pontos da palestra destacamos: "Verdadeiros Apóstolos", "A nova reforma apostólica", "Falsos apóstolos nos tempos da igreja primitiva", "Apóstolo não é um Dom", "Dominionismo", entre outros. Assista:


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Fonte: Cultura Bíblica

Errata: pelo menos umas 3 vezes o Rev. Nicodemus fala "amilenismo" quando era para ser "pós-milenismo". Perceba que em 45:15, ele fala amilenista duas vezes. 
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Calvinismo e Capitalismo - qual mesmo é a sua relação?

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Por Alderi Souza de Matos

A questão de como se relacionam o calvinismo e o capitalismo tem sido objeto de enorme controvérsia, estando longe de produzir um consenso entre os estudiosos. O tema popularizou-se a partir do estudo do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) intitulado A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado em 1904-1905. Numa tese oposta à de Karl Marx, Weber concluiu que a religião exerce uma profunda influência sobre a vida econômica. Mais especificamente, ele afirmou que a teologia e a ética do calvinismo foram fatores essenciais no desenvolvimento do capitalismo do norte da Europa e dos Estados Unidos.

Weber partiu da constatação de que em certos países da Europa um número desproporcional de protestantes estavam envolvidos com ocupações ligadas ao capital, à indústria e ao comércio. Além disso, algumas regiões de fé calvinista ou reformada estavam entre aquelas onde mais floresceu o capitalismo. Na sua pesquisa, ele baseou-se principalmente nos puritanos e em grupos influenciados por eles. Ao analisar os dados, Weber concluiu que entre os puritanos surgiu um "espírito capitalista" que fez do lucro e do ganho um dever. Ele argumenta que esse espírito resultou do sentido cristão de vocação dado pelos protestantes ao trabalho e do conceito de predestinação, tido como central na teologia calvinista. Isso gerou o individualismo e um novo tipo de ascetismo "no mundo" caracterizado por uma vida disciplinada, apego ao trabalho e valorização da poupança. Finalmente, a secularização do espírito protestante gerou a mentalidade burguesa e as realidades cruéis do mundo dos negócios.

Calvino de fato interessou-se vivamente por questões econômicas e existem elementos na sua teologia que certamente contribuíram para uma nova atitude em relação ao trabalho e aos bens materiais. A sua aceitação da posse de riquezas e da propriedade privada, a sua doutrina da vocação e a sua insistência no trabalho e na frugalidade foram alguns dos fatores que colaboraram para o eventual surgimento do capitalismo. Mesmo um crítico contundente da tese de Weber como André Biéler admite: "Calvino e o calvinismo de origem contribuíram, certamente, para tornar muito mais fáceis, no seio das populações reformadas, o desenvolvimento da vida econômica e o surto do capitalismo nascente" (O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 661). Todavia, esse e outros autores têm ressaltado como a ética e a teologia do reformador divergem radicalmente dos excessos do capitalismo moderno. Por causa das difíceis realidades econômicas e sociais de Genebra, Calvino escreveu amplamente sobre o assunto. Ele condenou a usura e procurou limitar as taxas de juros, insistindo que os empréstimos aos pobres fossem isentos de qualquer encargo. Ele defendeu a justa remuneração dos trabalhadores e combateu a especulação financeira e a manipulação dos preços, principalmente de alimentos. Embora considerasse a prosperidade um sinal da bondade de Deus, ele valorizou a pessoa do pobre, considerando-o um instrumento de Deus para estimular os mais afortunados à prática da generosidade. A tese de que as riquezas são sinais de eleição e a pobreza é sinal de reprovação é uma caricatura da ética calvinista. Para Calvino, a propriedade, o lucro e o trabalho deviam ser utilizados para o bem comum e para o serviço ao próximo.

Em conclusão, existe uma relação entre o calvinismo e o capitalismo, mas não necessariamente uma relação de causa e efeito. Provavelmente, mesmo sem o calvinismo teria surgido alguma forma de capitalismo. Se é verdade que a teologia e a ética reformadas se adequavam às novas realidades econômicas e as estimularam, todavia, o tipo de calvinismo que mais contribuiu para fortalecer o capitalismo foi um calvinismo secularizado, que havia perdido de vista os seus princípios básicos. Entre esses princípios está a noção de que Deus é o Senhor de toda a vida, inclusive da atividade econômica, e, portanto, esta atividade deve refletir uma ética baseada na justiça, compaixão e solidariedade social.

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Extraído do site Thirdmill - acessado em 25 de Março de 2009.
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Agostinho de Hipona: quem foi e como contribuiu para o correto entendimento das doutrinas cristãs?

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Por Tiago Santos


Uma das grandes belezas e seguranças da teologia bíblica, histórica e ortodoxa é que falta-lhe originalidade. A boa teologia é derivada da Palavra de Deus nas Escrituras, a qual tem sua origem através da inspiração do Espírito Santo. A teologia que honra a Deus é aquela que submete-se à autoproclamada autoridade das Escrituras e que, portanto, mantém-se no limite daquilo que foi revelado por Deus e ensinado pelos profetas e apóstolos. Nesse sentido é que a teologia não é e nem deve ser original e é por isso que, desde o fechamento do cânon, a ortodoxia cristã atravessa os séculos, as culturas e os poderes deste mundo conta com uma impressionante unidade e coerência em suas doutrinas mais basilares e importantes. Seus grandes dogmas são derivados da Bíblia.

Isso não quer dizer, todavia, que a teologia não deva buscar profundidade e desenvolvimento. Em grande medida, o produto teológico que temos hoje  à nossa disposição, é fruto do labor criativo, zeloso e meticuloso empreendido por estudiosos da Palavra de Deus, ao longo da história. Então, se por um lado, no núcleo do que a fé cristã afirma hoje, do que a igreja cristã crê, estão aquelas doutrinas que foram cridas e ensinadas desde os apóstolos, por outro, os séculos de história cristã serviram para o desenvolvimento, aprofundamento, refinamento e apuração dessas doutrinas. Não há grandes novidades, mas houveram grandes progressões.

Agostinho, garimpeiro de Deus

Um desses homens de Deus, dotado de uma mente criativa e intenso desejo de cavar mais profundamente na Palavra de Deus e que ajudou a pavimentar o caminho das grandes progressões do pensamento teológico foi o africano Agostinho de Tagaste (354-430), bispo de Hipona.

Agostinho foi, provavelmente, o grande pensador cristão da Idade Média. Por quase dois mil anos sua produção teológica tem pautado os grandes debates do cristianismo e influenciado o pensamento e cultura do Ocidente. Do ponto de vista católico, Joseph Aloisius Ratzinger ratifica essa impressão, ao dizer: “Agostinho deixou uma marca profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Sua influência é vastíssima. (...) Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, com ideias e formas que alimentariam gerações vindouras.”[1] A Reforma Protestante do século XVI, fundamental ao avivamento da fé e espiritualidade cristã, até então adoecida mortalmente pelo desvio teológico, corrupção e misticismo, deve a Agostinho o cerne de suas principais proposições, particularmente em questões como o pecado original, a graça de Deus, a salvação e a predestinação, além do exemplo de seu vigoroso ministério pastoral. O teólogo luterano Richard Balge, citando um colega, disse que: “Se Agostinho de Hipona tivesse vivido no tempo da Reforma, ele teria se juntado a Martinho Lutero”.[2] O teólogo presbiteriano B. B. Warfield, por sua vez, disse que “o sistema de doutrina ensinado por Calvino é somente o agostinianismo, conforme se vê em todos os demais reformadores. Pois, se a Reforma foi, do ponto de vista espiritual, um grande avivamento da religião, do ponto de vista teológico foi um grande reavivamento do agostinianismo”.[3] E o erudito batista Timothy George, ao falar da influência do pensamento agostiniano na Reforma, disse que “a linha principal da Reforma Protestante pode ser vista como uma aguda agostinianização do cristianismo.”[4]

Agostinho está do nosso lado

Os grandes representantes da Reforma do século XVI, Martinho Lutero, João Calvino, Martin Bucer, Philip Melanchton e tantos outros, encontraram na vigorosa teologia agostiniana fundamento tanto para o rompimento com o status quo da igreja romana como para afirmar a unidade do pensamento genuinamente cristão que remonta aos ensinos dos Pais da Igreja e dos Apóstolos. À guisa de ilustração, vejamos como o pensamento de Agostinho foi de grande importância para alguns dos reformadores mais destacados:

Martinho Lutero era um monge agostiniano e derivou dessa escola o tutano de sua própria teologia. A influência de Agostinho em Lutero, aliás, parece haver perpassado todas as fases de sua vida como teólogo. No prefácio da Theologia Germânica, obra do século XV redescoberta por Lutero e republicada por ele em 1516, ele reconhece o débito que tem com Agostinho, colocando seus escritos próximos dos escritos da própria Escritura. Em suas “conversas de mesa”, em 1532, Lutero disse: “No começo de minha carreira, como professor de teologia, eu não simplesmente lia Agostinho, mas devorava suas obras com voracidade”.[5] No prefácio de seus Escritos Latinos, de 1545 – um ano antes de sua morte – Lutero faz referência à obra O Espírito e a letra, de Agostinho, e diz que há muitas semelhanças em seu entendimento sobre a justiça de Deus. Seu companheiro e colega reformador, o teólogo Philip Melancthon, via Lutero, no contexto da Reforma, como uma “voz intercambiável com a de Agostinho; uma voz que renovava o ensino primitivo da igreja”.[6] 

Com João Calvino não foi diferente. A influência da teologia agostiniana também é bem evidente em toda sua carreira teológica.[7] Ele mesmo disse que “ficaria feliz em confessar toda sua fé pelas palavras de Agostinho”[8] e ainda fez uma famosa afirmação de aprovação, ao dizer: Augustinus totus noster est, isto é, que “Agostinho está do nosso lado”. O historiador Justo Gonzalez lembra que na principal obra de Calvino, as Institutas, “se manifesta um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas também de antigos escritores cristãos, particularmente Agostinho”.[9] Na última edição das Institutas, de 1559, encontram-se mais de 400 citações de textos de Agostinho. Calvino confiava mais na teologia de Agostinho do que em sua exegese, como se vê em vários de seus comentários bíblicos, particularmente seu comentário em Romanos, no qual ele critica a abordagem alegórica que muitas vezes Agostinho emprestava ao texto, mas, o fato é que esse eminente pai da igreja é uma grande fonte de inspiração e influência da produção teológica e pastoral de Calvino.

Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo que teve papel vital na busca de unidade entre os demais reformadores, também apoiou-se em Agostinho para desenvolver muito de seu pensamento teológico. Num certo ponto, ele disse que tem “grande reverência por Agostinho”.[10] Em sua obra, Florilegium Patristicum, na qual reúne citações dos Pais da Igreja, encontram-se várias referencias às obras e pensamento de Agostinho. Também em sua obra sobre teologia pastoral, Sobre o Verdadeiro Cuidado das Almas, Bucer faz muitas referências ao trabalho pastoral e à teologia de Agostinho. Em seu comentário à epístola de Paulo em Romanos, de 1536, Bucer faz um grande esforço para aliar-se a Agostinho no tratamento que este faz dos textos do Antigo e Novo Testamento e até mesmo em suas noções sobre a justificação (declarada e transmitida). Ainda que Bucer estivesse pronto para discordar de Agostinho quando necessário, o fato é que ele viu em Agostinho uma voz de consonância com o corpo da reforma e alinhou-se à essa voz em algumas áreas vitais.

O período pós reforma também valeu-se do pensamento de Agostinho – seja diretamente, ou indiretamente pela influência dos próprios reformadores. Também as gerações sucessivas, todas elas têm sido, como notou Ratzinger, alimentadas pelas ideias e pensamentos deste gigante da fé. Ele é provavelmente o mais qualificado representante da igreja primitiva e permanece como uma das mentes mais importantes da história da fé cristã.

As Confissões

De tudo quanto Agostinho produziu, destaco aquela que muito provavelmente foi a sua principal obra: As Confissões. Trata-se de sua autobiografia, escrita em treze livros no curso de três anos,  entre os anos de 397 e 400. Há muito que se poderia falar sobre As Confissões e seus benefícios e virtudes. Eruditos e literatas, tanto da filosofia como da teologia, certamente já têm empreendido o papel de analisar as muitas riquezas dessa obra e extrair o sumo de seu rico conteúdo. Aqui queremos oferecer apenas um pequeno vislumbre dessa que permanece como uma das mais importantes obras literárias de todos os tempos.

Nela Agostinho empreende uma profunda investigação da própria alma, da sua fé e de sua sincera busca por Deus. Ele abre seu coração e, numa conversa dirigida a Deus, confessa seus pecados, dramas, angústias d’alma, frustrações e também sua luta pela verdade e sua luta com o próprio Deus.

Vemos, por exemplo, em As Confissões, uma verdadeira luta da mente e a sublime busca pela verdade, a qual Agostinho reconhece haver encontrado somente quando Jesus o encontrou:

Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência por meio de tuas obras. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza se recobrou, e voltei a meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrança amorosa e, por assim dizer, o desejo do perfume do alimento saboroso que eu ainda não podia comer. [11]

Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. [12]

Também vemos a luta da carne, a qual ele chama de luta com a luxúria: “Admirava-me de já vos ter amor e de não amar um fantasma em vez de Vós. Era arrebatado para vós pela vossa beleza, e logo arrancado de vós pelo meu peso. Este peso eram os hábitos da luxúria”.[13] Sua luta contra as tentações sexuais ainda é exemplificada pela famosa oração: “Senhor, dá-me a castidade e a continência, mas ainda não”.[14] Todavia, é preciso registrar, muitas vezes a culpa de Agostinho por conta de sua concupiscência tem levado muitos a acusarem-no de ter sido promíscuo. Mas talvez essa conclusão seja injusta, pois ele mesmo registra somente um caso amoroso, com uma concubina, mãe de seu filho Adeodato, mulher a quem muito amou, embora nunca tenha se casado com ela.

Ele ainda conta como Deus o alcançou e salvou e como ele passou a perceber a mão providente de Deus nas diversas fases de sua vida, além de ter uma noção mais plena e gozosa da beleza de Deus, depois de sua conversão. As Confissões também são uma expressão de adoração e uma declaração de amor e devoção a Deus e nela ele exalta a Deus louvando-o pela criação. Num certo ponto, ele confessa:

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama.” [15]

De tudo o mais, um aspecto muito sublime de suas Confissões, que se alteia como um fator presente em toda narrativa, é a noção de que é Deus quem vem ao encontro do homem para alcançá-lo e salvá-lo. Talvez a expressão que melhor exemplifica essa realidade na experiência de Agostinho, seja a oração que ele repete algumas vezes no curso de suas confissões: “Dai-me o que ordenais, e ordenai-me o que quiserdes” (Da Quod Iubes et Iube Quod Vis). Esta oração causou arrepio no grande rival de Agostinho, Pelágio, que via nela uma afronta ao livre arbítrio do homem, o qual, Pelágio cria, nascia reto e tinha em si mesmo a capacidade de obedecer ou rejeitar a Deus. Mas Agostinho entendeu – e essa oração assim o demonstra – que somente a graça de Deus e o poder do Espírito, atuando no interior do homem, é que pode levá-lo ao próprio Deus. É Deus quem dá causa à fé, ao amor, à devoção e à obediência e é por isso que ele pede: concede-me o que ordenais, isto é, capacita-me, Senhor, para o que queres. Em outra obra sua, ele pergunta: “Que nos ordena Deus em primeiro lugar, e com mais insistência, senão que acreditemos nele? Ora, é precisamente esta graça que ele nos concede”.[16]

Por que ler Agostinho?

Em nossa breve tradição protestante no Brasil, a reação ao catolicismo romano tem, não raras vezes, rejeitado muito dos símbolos, tradição, produção teológica, proponentes da fé que são, normalmente, associados à Roma. Assim, não é incomum alguma desconfiança do leitor mais desavisado, porém sincero e zeloso, quando se fala no proveito que temos pela leitura e aprendizado com aqueles que estejam ligados à tradição romana. Mas essa reação muitas vezes é exagerada e mais emocional do que justa. Muito do que é rejeitado é herança da cristandade, da fé cristã na história e de imenso proveito para os cristãos hoje. Faríamos bem em, ao contrário dessa tendência, resgatar e valorizar esse rico legado.

Em Agostinho, particularmente, há muito que aprender – como fizeram também nossos pais reformadores e toda tradição cristã nesses últimos dezessete séculos.

E há muito o que ler de Agostinho. Dentre os Pais da Igreja, seus escritos são os mais abundantes. A história de sua vida e sua obra foram catalogados pelo cuidadoso trabalho de seu biografo e contemporâneo Possídio, que escreveu a Vita Augustini e indexou nela o Indiculos, que elencava e reproduzia suas principais obras. São centenas de homilias e cartas ainda preservadas e várias obras filosóficas e teológicas que, conforme coloca Ratzinger, “são de importância fundamental, não só para o cristianismo, mas para a formação de toda cultura ocidental”. [17]

Em seus escritos, temos um tesouro de sabedoria que pode fazer muito bem ao povo de Deus, se lido com discernimento. É claro que Agostinho teve os seus limites e cometeu seus equívocos. Mas encontramos nele uma mente brilhante e um coração radiante, que ardia por amor a Deus, como pouco se vê em nossos tempos. Temos nele um esforço diligente para submeter todas as coisas à revelação. Suas Confissões, aliás, são a grande prova disso. Foi somente quando a Escritura falou que sua obstinada busca pela verdade cessou. A partir desse ponto, ele passa a ser um estudioso da verdade contida nas Escrituras. Conforme colocou Solano Portela, em uma conversa que tivemos sobre o bispo de Hipona, “Agostinho cavou nas Escrituras em busca da verdade; a Reforma fez o mesmo; Calvino continuou cavando e olhando com mais clareza as Escrituras; nós temos de fazer o mesmo. Igreja Reformada sempre se reformando é isso”.

Em Agostinho, temos uma impressionante profundidade teológica, assertividade e firmeza doutrinária, intensa devoção a Deus, inquestionável respeito ao texto bíblico e genuína preocupação pastoral. Essas qualidades são um grande estímulo para o estudante de teologia, particularmente, mas também para todo cristão sincero que busca agradar a Deus e viver neste mundo vil e cheio de perigos - especialmente diante dos muitos desafios enfrentados pela fé cristã de nossos tempos, em que os valores deste mundo são difusos, em que há uma crise de conteúdo e substância de fé e onde os homens - e, surpreendentemente, até mesmo uma ala do cristianismo - suspeitam dos dogmas e afirmações da Palavra de Deus e da ortodoxia cristã. Em Agostinho temos a junção de vida vigorosa e doutrina robusta. Isso faz dele um campeão da fé.

Mais uma vez, Ratzinger oferece um útil insight sobre a obra de Agostinho:

Em seus escritos [Agostinho] o encontramos vivo. Quando leio os escritos de Santo Agostinho, não tenho a impressão que se trata de um homem morto há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com sua fé vigorosa e atual. Nele vemos a atualidade permanente de sua fé. Fé que vem de Cristo, Verbo Eterno encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que essa fé não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o caminho, a verdade e a vida. Assim nos encoraja Agostinho a confiarmos neste Cristo sempre vivo e encontrar nele o caminho da vida. [18]

Que saibamos aproveitar a sinceridade da jornada de Agostinho de Hipona em busca da verdade, a criatividade de sua teologia, a beleza de sua devoção a Deus, o vigor de seu exemplo e testemunho, a firmeza de sua fé.

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Notas:
[1] Bento XVI. Os Padres da Igreja (Campinas, SP: Eclesiae, 2012) p. 183-184
[2] Richard D. Balge, Martin Luther, Agostinian (artigo publicado em http://www.wlsessays.net/files/BalgeAugustinian.pdf), acessado em novembro de 2013.
[3] Benjamin Breckinridge Warfield, John Calvin: the man and his work (The Methodist Review, Outubro de 1909).
[4] Timothy George. Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2004), p.76.
[5] Martinho Lutero. Luther Works, LI, xviii.
[6] Peter Fraenkel, Testimonia Patrum: The Function of the Patristic Argument in the Theology of Philip Melanchthon (Genebra: Droz, 1961), p. 32.
[7] Recomendo a leitura do artigo de S. J. Han: An Investigation into Calvin’s use of Augustine (http://www.ajol.info/index.php/actat/article/viewFile/52214/40840), Acessado em novembro de 2013.
[8] Paul Helm. Apud em N. R. Needham, The Triumph of Grace (London: Grace Publication, 2000), p.8
[9] Justo Gonzalez, A Era dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2004), p.112.
[10] Basil Hall, Martin Bucer: Reforming Church and Community, ed. D. F. Wright (Cambridge, UK: Cambridge Press, 1996), p. 150.
[11] Agostinho, Confissões (São Paulo, SP: Editora Nova Cultural, 1999), p. 185.
[12] Ibidem, p. 192.
[13] Ibidem, p. 190.
[14] Ibidem, p. 214.
[15] Ibidem, p. 285.
[16] Agostinho. Confissões. Nota de J. Oliveira Santos, apud, De Bono Perseverantiae: Quid vero nobis primitus et maxime Deus iubet, nisi ut credamus in Eum? Et hoc ergo ipse dat (São Paulo, SP: Nova Cultural, 1999), p. 286.
[17] Ratzinger, Padres da Igreja, p. 201.
[18] ibidem, p. 193.

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Sobre o autor: Tiago Santos é bacharel em direito e mestrando (M.Div) em Teologia Sistemática pelo CPAJ da universidade presbiteriana Mackenzie. É membro da Igreja Batista da Graça onde auxilia como pregador e professor de teologia. É o editor e o diretor acadêmico do Curso Fiel de Liderança, ambos na Editora Fiel, tendo exercido ministério pela Editora Fiel em Portugal, Moçambique, Angola e EUA. É o diretor pastoral e professor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP. É fellow do Jonathan Edwards Study Center de São Paulo, SP, articulista e escritor de textos teológicos.

Fonte: Revista Fé Para Hoje Edição Nº40
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