Uma crítica ao libertarismo

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Por John Frame


O libertarismo tem uma longa história na teologia cristã. A maioria dos pais da igreja sustentava mais ou menos essa posição, até que Agostinho a questionou, durante a controvérsia pelagiana. Desde aquele tempo, então, tem havido contenda entre as concepções agostinianas e pelagianas de liberdade, resultando, às vezes, em oscilantes misturas das duas. Tanto Lutero como Calvino sustentavam um compatibilismo agostiniano, mas os socianos e, mais tarde os arminianos, apresentavam vigorosas defesas do libertarismo. Hoje em dia, o conceito libertário prevalece em grande parte do cristianismo evangélico e entre os filósofos cristãos. Teologicamente, é defendido pelos arminianos tradicionais, pelos adeptos do teísmo aberto, pelos pensadores do processo, e muito outros. Poucos teólogos se opõem a esse conceito atualmente, exceto alguns calvinistas envergonhados, e até mesmo alguns pensadores da tradição reformada gravitam em direção ao libertarismo ou falam sobre o assunto de modo obscuro. 

No entanto o libertarismo está sujeito a severas críticas:

1. Os dados bíblicos citados no capitulo 4 (A eficácia do controle exercido por Deus) acerca do controle de Deus sobre as decisões humanas, até mesmo sobre os pecados humanos, são incompatíveis com o libertarismo. A Escritura deixa claro que as nossas escolhas são governadas pelo plano de Deus, apesar do fato de que somos totalmente responsáveis. 

2. A Escritura não ensina explicitamente a existência de uma liberdade libertaria. Não há nenhuma passagem que possa ser interpretada como dizendo que a vontade humana é independente do plano de Deus e dos demais componentes da personalidade humana. Geralmente os libertários nem sequer tentam estabelecer sua posição mediante exegese direta [...]. Antes, eles tentam deduzi-la de outro conceito bíblico, tais como a responsabilidade humana propriamente dita e os mandamentos, exortações e declarações do divino que implicam responsabilidade humana. No entanto, nessa tentativa, eles aceitam um grande ônus de prova, que os argumentos não confirmam. O libertarismo é, na verdade, uma noção filosófica técnica, que faz várias pressuposições sobre causalidade, sobre a relação da vontade com a ação, a relação da vontade como caráter e com desejo, e a limitação da soberania de Deus. É um esforço tremendo derivar todos esses conceitos técnicos da ideia bíblica da responsabilidade humana, e vou procurar mostrar abaixo que as tentativas dos libertários de fazer isso estão longe de obterem sucesso. E, se eles falham em fazer face a esse ônus de prova, então temos que abandonar ou o libertarismo ou a sola Scriptura

3. A Escritura nunca baseia a responsabilidade humana (no sentido de obrigação de prestar contas) na liberdade libertária, ou, quanto a essa questão, em nenhum outro tipo de liberdade. Somos responsáveis porque Deus nos criou, é nosso dono e tem direito de avaliar a nossa conduta. Portanto, de acordo com a Escritura, a autoridade de Deus é a base necessária e suficiente da responsabilidade humana. Às vezes, a nossa capacidade ou incapacidade é relevante para o juízo de Deus e, portanto, para a nossa responsabilidade no sentido de arcar com as consequências, como vimos. Mas a Escritura nunca sugere que a liberdade libertária tem alguma relevância, nem mesmo para a questão de arcar com as consequências. 

4. Tampouco a Escritura indica que deus dá algum valor positivo à liberdade libertária (mesmo que admitamos que ela exista). Esse é um ponto significativo, porque a defesa do livre arbítrio contra o problema do mal argumenta no sentido de que Deus dá tão alto valor à livre escolha humana que a deu às criaturas até com o risco de que elas poderiam trazer mal para o mundo. Pode-se imaginar, então, que a Escritura teria inúmeras declarações demonstrando que atos livres, sem causa, praticados pelas criaturas, são tão tremendamente importantes para Deus, que lhe dão glória. Mas a Escritura nunca sugere que Deus honra escolhas sem causa, de modo nenhum, ou sequer reconhece a sua existência. 

5. Na verdade, ao contrário, a Escritura ensina que no céu, o estado consumado da existência humana, não seremos livres para pecar. Logo, o mais elevado estado da existência humana será um estado sem liberdade libertária. 

6. A Escritura nunca julga a conduta de ninguém referindo-se à sua liberdade libertária. E Escritura nunca declara alguém inocente porque a sua conduta não era livre no sentido libertário; também jamais declara alguém culpado apontando para a sua liberdade libertária. Nós já vimos que, às vezes, a Escritura se refere implicitamente à liberdade ou à capacidade no sentido compatibilista. Mas nunca se refere à liberdade num sentido demonstravelmente incompatibilista. 

7. A verdade é que a Escritura condena algumas pessoas por atos que, claramente, não eram livres no sentido libertário. Esses atos mencionados no capitulo 4 sob o titulo “Pecados, encaixam-se nesta categoria, como a traição de Jesus por Judas. Até mesmo o adepto do teísmo aberto, Gregory Boyd, admite que o ato de traição de Judas não foi livre no sentido libertário. 

8. Nos tribunais civis, nunca se presume que a liberdade libertária é condição para que haja responsabilidade moral. Consideremos Hubert, assaltante de banco. Se a culpa pressupusesse liberdade libertária, então, para mostrar que Hubert era culpado, o promotor teria que mostrar que a decisão de roubar um banco foi sem nenhuma causa. Porém, que prova o promotor poderia apresentar para mostrar isso? Provar algo negativo é sempre difícil, e, evidentemente, seria impossível mostrar que a decisão interior de Hubert foi completamente independente de um decreto divino, ou de uma causa natural, ou do caráter, ou de algum motivo O mesmo se aplicaria a qualquer processo criminal. O libertarismo tornaria impossível provar a culpa de quem quer que fosse. 

9. De fato, os tribunais civis normalmente presumem o oposto do libertarismo, ou seja, que a conduta dos criminosos provém de motivos. Por conseguinte, muitas vezes os tribunais passam muito tempo discutindo se o acusado tinha um motivo adequado para cometer o crime. Se fosse possível mostrar que o ato de Hubert não dependeu de motivos, nesse caso, provavelmente, ele seria julgado insano e, portanto, não responsável, em vez de ser julgado culpado. Na verdade, se o ato de Hubert fosse completamente independente do seu caráter e dos seus desejos e motivos, poder-se-ia muito bem perguntar em que sentido esse ato foi realmente de Hubert. E, se não foi ato de Hubert, como pode ele ser responsável pelo mesmo? Vemos, pois, que, em vez de ser o fundamento da responsabilidade moral, o libertarismo a destrói. 

10. A Escritura contradiz a proposição segundo a qual somente decisões não causadas são moralmente responsáveis. Como vimos no capitulo 4, Deus, na Escritura, muitas vezes suscita ações livres, e até mesmo atos pecaminosos, dos seres humanos, sem diminuir nem um pouco a responsabilidade deles. No presente capítulo, temos visto que o controle soberano de Deus sobre os atos humanos e a responsabilidade do homem pelos mesmos atos são frequentemente mencionados na mesma passagem.

11. A Escritura nega que temos a independência requerida pela teoria libertária. Não somos independentes de Deus, pois ele controla as livres ações humanas. Tampouco podemos escolher agir independentemente do nosso caráter e do nosso desejo. Conforme Mateus 7.15-20 e Lucas 6.43-45, a boa árvore produz bom fruto, e a árvore ruim produz fruto ruim. Se o coração da pessoa está certo e é reto, seus atos serão certos e retos; do contrário, seus atos serão maus. 

12. Segue-se, pois, que o libertarismo viola o ensino bíblico concernente à unidade da personalidade humana no coração. A Escritura ensina que os corações humanos, e, portanto, as nossas decisões, são ímpios por causa da Queda, mas que a obra redentora de Cristo e o poder regenerador do Espirito Santo purificam o coração para que os nossos atos possam ser bons. Somos seres humanos caídos e renovados como pessoas completas. Essa integridade da personalidade humana não é possível numa construção libertária, porquanto, com base nessa ideia, a vontade sempre terá que ser independente do coração e de todas as outras faculdades. 

13. Se a liberdade libertária fosse necessária para a responsabilidade moral, Deus não seria responsável pelos seus atos, uma vez que ele não tem liberdade para agir contra seu caráter santo. Do mesmo modo, os santos glorificados no céu não seriam moralmente responsáveis, uma vez que não podem cair novamente em pecado. Se eles tivessem a liberdade libertária, poderiam cair em pecado, como Orígenes especulou, caso em que a redenção realizada por Jesus seria insuficiente para dar o devido tratamento ao pecado, pois não poderia alcançar a inconstância inerente do livre arbítrio humano. 

14. Essencialmente, o libertarismo é uma generalização altamente abstrata do principio segundo o qual a incapacidade limita a responsabilidade. Os libertários dizem que, se as nossas decisões padecem de algum tipo de incapacidade, significa que não somos verdadeiramente livres e não somos verdadeiramente responsáveis por elas. Já vimos que a incapacidade limita a responsabilidade até certo ponto, mas que esse princípio nem sempre é válido, que sempre padecemos de alguns tipos de incapacidade e, portanto, que o citado princípio deve ser utilizado com grande cautela. O libertarismo lança a cautela aos ventos. 

15. O libertarismo é inconsistente, não apenas com a preordenação divina de todas as coisas, mas também com o seu conhecimento dos acontecimentos futuros. Se Deus sabia que em 1930 eu usaria uma camisa verde no dia 21 de julho de 1998, isso significa que eu não sou livre para evitar usar tal camisa nesta data. Pois bem, os libertários defendem a tese de que Deus conhece os acontecimentos sem causá-los. Mas, se em 1930, Deus conhecia os acontecimentos de 1998, sobre que base os conhecia? Os calvinistas respondem que Deus os conhece porque conhece os próprios planos para o futuro. Mas como, sobre uma base arminiana, Deus poderia saber do meu ato livre a ocorrer 68 anos depois? Minhas decisões são governadas por uma cadeia deterministas de causas e efeitos finitos? Haverá alguma força ou alguma pessoa, que não Deus, que torna certo os acontecimentos futuros – um ser que Deus observa passivamente? (Essa é uma possibilidade assustadora, dificilmente consistente com o monoteísmo.) Nenhuma dessas respostas, nem qualquer outra na qual posso pensar, é consistente com o libertarismo. Por essa razão, os defensores do teísmo aberto, como os proponentes socinianos de Calvino, negaram o elemento-chave do arminianismo tradicional, ou seja, o pré-conhecimento exaustivo de Deus. Esse passo é drástico, como veremos em nossa posterior discussão sobre o conhecimento de Deus [conhecimento médio]. Parece-me que els seriam mais sábios se rejeitassem o libertarismo, em vez de reconstruírem drasticamente a sua teologia para torna-la consistente o libertarismo. 

16. Os libertários, como Pinnock e Rice, tendem a fazer da sua visão do livre arbítrio uma verdade central, inegociável, com a qual todas as outras declarações teológicas têm de ser forçada a ser compatíveis. Assim é que a liberdade libertária assume uma espécie de posição paradigmática ou pressuposicional. Mas, como vimos, o libertarismo é anti-escriturístico. Já seria suficientemente ruim adotar o libertarismo. Mas fazer dele uma verdade central ou uma perspectiva governante é realmente muito perigoso. Um erro incidental pode ser corrigido sem muita dificuldade. Mas quando esse erro se torna um principio importante, uma grelha pela qual todas as outas declarações doutrinárias são filtradas, significa, nesse caso, que é um sistema teológico que corre grave perigo de sofre naufrágio. 

17. As defesas filosóficas do libertarismo frequentemente recorrem à intuição como a base para a crença do livre arbítrio. Isto é, toda vez que nos defrontamos com uma escolha, achamos que poderíamos fazê-la de um modo ou de outro, até mesmo contra o nosso desejo mais forte. Às vezes temos consciência, dizem eles, de que estamos combatemos os nossos desejos mais fortes. Mas, seja o que for que alguém diga, em geral, sobre recorrer à intuição, essa jamais pode ser a base para uma negativa universal. Quer dizer, a intuição nunca pode revelar a ninguém que as suas decisões não têm causa. Nunca temos nada que possa ser descrito como um sentido de falta de causação. 

Tampouco a intuição pode revelar-nos que todos os nossos atos têm uma causa exterior. Se todos os nossos atos fossem determinados por algum meio alheio a nós, não poderíamos identificar essa causação nem por intuição nem por sensação ou percepção, pois não teríamos nenhum modo de comparar uma percepção de causação com uma percepção de não causação. Podermos identificar influencias que às vezes prevalecem sobre nós e às vezes não - forças às quais resistimos com êxito, mas nem sempre. Porém, não podemos identificar forças que constante e irresistivelmente determinam os nossos pensamentos e a nossa conduta. Logo, a intuição nunca nos revela se somos determinados por causas alheias a nós ou não. 

18. Se o libertarismo é verdadeiro, então de alguma maneira Deus teria limitado a sua soberania de modo que não faz tudo o que acontece. Porém, a Escritura não contém nenhuma alusão a que Deus tenha limitado em algum grau a sua soberania. De Gênesis 1 a Apocalipse 22, Deus é o Senhor. Ele é sempre totalmente soberano. Ele faz tudo quanto lhe apraz (Sl 115.3). Ele realiza tudo de acordo com o conselho da sua vontade (Ef 1.11). Além disso, é da própria natureza de Deus ser soberano. Soberania é seu nome, o real significado do nome Yahweh, em termos de controle e de autoridade. Se Deus limitasse a sua soberania, ele se tornaria algo menos que Senhor de tudo e de todos, algo menos do que Deus. E se Deus se tornasse algo menos do que Deus, ele se destruiria. Deixaria de existir. Podemos ver que as consequências do libertarismo são realmente graves. 

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Fonte: FRAME, John. A doutrina de Deus; São Paulo; Cultura Cristã, 2013. Págs. 121-124.
Imagem: St Augustine debating against the Donatists at the Council of CarthageCarle Van Loo (1705-1765). Arte: Bereianos
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