O Luteranismo Confessional e o Monergismo

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Silas Daniel publicou na CPAD News sua quarta resposta, agora tratando de Martinho Lutero. Para relembrar o que já foi dito em meu último texto, neste texto o autor também tenta impor ao reformador alemão categorias interpretativas estranhas aos seus escritos, tais como “cinco pontos do calvinismo” ou do “arminianismo”, quando os eixos interpretativos devem ser monergismo e sinergismo, ou agostinianismo e pelagianismo (e suas gradações, semiagostinianismo e “semipelagianismo”).


Um irmão luterano, o reverendo Daniel Branco, preparou uma competente, respeitosa e muito bem escrita refutação em dez pontos ao quarto texto de Silas Daniel, que pode ser lida na página da Congregação Luterana da Reforma.

Neste artigo, já que a tradição luterana é confessional, serão feitas citações diretas de fontes primárias, os documentos reunidos no Livro de Concórdia, para mostrar que esta tradição é monergística, ainda que distinta e crítica da fé reformada. Tal esforço é importante e compensador. Silas Daniel cita uma impressionante lista de fontes secundárias – todas em inglês (até onde percebi), mesmo quando já traduzidas para o português, o que dificulta ao leitor sem domínio daquele idioma o acesso às mesmas para checar as fontes citadas. Um exemplo problemático é o uso que ele faz de H. Bavinck. Em seu texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68), ele, se apoiando no teólogo holandês, afirmou que Lutero “abrandou a sua posição afirmada em De servo arbítrio” (cujo título nas Obras Selecionadas é Da vontade cativa). Na verdade, Bavinck afirma que “embora em suas polêmicas com os anabatistas [Lutero] tenha enfatizado cada vez mais a revelação de Deus na Palavra e nos sacramentos, ele nunca reverteu sua posição sobre predestinação” (Teologia Sistemática, v. 2, p. 364). Em seu novo texto, Silas, surpreendentemente, escreve que “quanto à afirmação de Bavinck de que os ‘verdadeiros luteranos’ [ibid, p. 364] rejeitaram o sinergismo de Melanchthon, trata-se de uma tremenda distorção da história”. A impressão que dá é que o autor mencionou Bavinck apenas quando a citação aparentemente favoreceu o seu argumento. 

Lembrando do princípio de que para tratar de temas teológicos controversos deve-se começar com o que afirmam as confissões de fé que resumem as posições das tradições estudadas, passemos às citações dos escritos confessionais luteranos contidos no Livro de Concórdia.

1. A tradição luterana é monergista. Isto pode ser conferido na Fórmula de Concórdia XI.1-14, no capítulo que trata “da eterna presciência e eleição de Deus”, que afirma que “sobre este artigo não ocorreu dissensão pública entre os teólogos da Confissão de Augsburgo”. E continua: “A presciência de Deus nenhuma outra coisa é senão isso que Deus sabe todas as coisas antes de elas acontecerem... (...) Se estende igualmente sobre os bons e os maus, não sendo, porém, causa do mal nem do pecado... (...) Também não é a causa da perdição dos homens, pela qual eles mesmos são culpados. A presciência de Deus apenas regula o mal e lhe fixa limite quanto à duração, fazendo com que tudo, não obstante seja mau em si mesmo, sirva à salvação de seus eleitos”. Por fim: “A predestinação ou eterna eleição de Deus, entretanto, diz respeito apenas aos piedosos, agradáveis filhos de Deus, sendo uma causa da salvação deles, a qual ele também provê, e ordena o que a ela pertence. Sobre ela, nossa salvação se funda de maneira tão firme que ‘as portas do inferno não prevalecerão contra ela’. (...) Com essa breve explicação da eterna eleição de Deus, dá-se a Deus sua honra inteira e plenamente, que ele, somente por sua pura misericórdia, sem qualquer mérito nosso, nos salva ‘segundo o propósito’ da sua vontade. Além disso, também não se dá a ninguém causa para pusilanimidade ou vida rude, desenfreada” (2-4, 14). Por meio de negativas, é rejeitada a ideia de uma dupla predestinação simétrica (predestinatio gemina). Na Declaração Sólida XI, “da eterna presciência e eleição de Deus”, tal posição é detalhadamente reafirmada. Um trecho basta:

“Essa é a extensão em que o mistério da predestinação nos é revelado na palavra de Deus. E se a isso nos restringimos e ativermos, deveras, é doutrina útil, salutar e confortadora, pois que mui poderosamente confirma o artigo de que somos justificados e salvos sem qualquer obra e mérito nosso, exclusivamente pela graça, tão-só por causa de Cristo. Antes do tempo do mundo, antes de existirmos, ‘antes da fundação do mundo’, quando, naturalmente, nada de bom poderíamos ter feito, fomos eleitos, por graça, em Cristo, para a salvação, ‘segundo o propósito de Deus’, Rm 9; 2 Tm 1. Isso também derruba todas as opiniones e doutrinas errôneas sobre os poderes de nossa vontade natural, porque, em seu conselho, Deus resolveu e decretou, antes do tempo do mundo, que, pelo poder de seu Santo Espírito, mediante a palavra, ele mesmo quer criar e operar em nós tudo o que pertence à nossa conversão”.

Portanto, aqueles familiarizados com a tradição confessional luterana sabem que esta, ainda que tendo agudas diferenças em relação à tradição reformada, é monergística (para uma exposição do pensamento de Lutero sobre a predestinação, cf. Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero, p. 291-303).

2. Por defender uma interpretação anacrônica da controvérsia soteriológica, o autor insiste que os Artigos de Esmacalde III.40-45 ensinariam a “crença de Lutero na possibilidade de um cristão genuíno cair da graça”, quando o luteranismo oferece outra possibilidade de compreensão da segurança da salvação. Os artigos ensinam:

“E esse arrependimento perdura nos cristãos até a morte, pois que briga com o pecado que remanesce na carne ao longo da vida toda, como S. Paulo testifica em Rm 7 que guerreia contra a lei de seus membros, etc. E isso não o faz mediante forças próprias, senão pelo dom do Espírito Santo, dom que se segue o perdão dos pecados. Esse dom purifica e varre diariamente os pecados remanescentes e opera no sentido de tornar o homem bem puro e santo. 
Disso nada sabem nem papa, nem teólogos, nem juristas, nem homem algum. É doutrina do céu, revelada pelo evangelho. E ela tem de suportar o ser chamado de heresia entre os santos ímpios.
Por outro lado, é possível que venham alguns espíritos sectários – e talvez já estejam presentes alguns, tais como os que no tempo da insurreição [a Guerra dos Camponeses, de 1525] me surgiram a mim mesmo diante dos olhos – e sustentem a seguinte opinião: Todos aqueles que alguma vez hajam recebido o Espírito ou o perdão dos pecados, ou que se hajam alguma vez tornado crentes, esses, caso pequem depois disso, mesmo assim permanecerão na fé, e tal pecado não lhes fará mal. E, de acordo com isso, berram: ‘Faze o que quiseres; se crês, nada importa; a fé extingue todo pecado’, etc. Dizem, além disso, que nunca teve de modo verdadeiro o Espírito e a fé aquele que peca depois da fé e do Espírito. Tais criaturas insanas têm-me aparecido muitas pela frente, e temo que esse demônio ainda esteja alojado em algumas.
Por isso é necessário saber e ensinar: pessoas santas ainda têm e sentem o pecado original e, diariamente, se arrependem e lutam contra ele. Se, à parte disso, lhes acontece caírem em pecado manifesto, como por exemplo, Davi, em adultério, em assassínio e em blasfêmia, então a fé e o Espírito estiveram ausentes. Pois o Espírito Santo não permite que o pecado governe e prevaleça, de modo que seja consumado, porém reprime e resiste, de forma que não pode fazer o que quer. Se, porém, fizer o que é de sua vontade, então o Espírito Santo e a fé não estão presentes. Porquanto São João diz: ‘Pois quem é nascido de Deus não peca e não pode pecar’. Contudo, também é verdade, conforme escreve o mesmo São João: ‘Se dissermos que não temos pecado nenhum, mentimos, e a verdade de Deus não está em nós’”.

Tal declaração deve ser lida em contexto, isto é, as controvérsias com os vários grupos anabatistas, chamados coletivamente pelos reformadores alemães de “entusiastas” (Schwärmer ou Schwärmertum, sinônimo de “fanáticos”). Numa nota de rodapé do Livro de Concórdia, comentando a frase “então o Espírito Santo e a fé não estão presentes”, cita-se Gottfried Noth, que afirmou que “M. Chemnitz repetidas vezes apela para esse passo dos Artigos de Esmacalde, interpretando-o, porém, mal, como se Lutero quisesse dizer que pecados grosseiros liquidam a fé”.

Para entender o que a tradição luterana confessional defende sobre a fé e a certeza da salvação, pode-se ir a John Theodore Mueller, Dogmática cristã, que escreve: “Se os papistas e protestantes romanizantes negam que o crente possa estar certo de sua salvação, é porque ensinam que a salvação, ao menos em parte, depende das boas obras do crente. (...) Todo aquele que crê em Cristo com sinceridade está seguro de seu estado de graça e salvação; pois o Espírito Santo, que nele gerou fé pelo Evangelho, por essa mesma fé lhe dá certeza de que é filho de Deus e herdeiro da vida eterna” (p. 320, 322). Mas, para Mueller, há que se fazer uma distinção entre a primeira conversão, e a conversão continuada, que “jamais está completa enquanto [a pessoa que crê em Cristo] vive no mundo”. Esta conversão continuada não é um processo de santificação interna, mas um viver na confiança na salvação obtida objetivamente na Palavra e nos sacramentos. Portanto, “o fato de aqueles que crêem em Cristo poderem cair da graça ou perder a fé constitui doutrina clara da Bíblia”, ainda que seja “preciso manter que podem se converter de novo (...) os que caíram na fé” (p. 341). Esse autor, em sua obra, critica o entendimento reformado da perseverança, pois esta nega “a gratia universalis”. Mas rejeita a compreensão sinergista da perseverança, pois esta nega “o sola gratia”, ensinando que “o pecador tem de entrar com a sua quota a bem de se tornar cristão, assim como também tem de cumprir com a sua parte para poder perseverar na fé”. De acordo com Mueller, “o monergismo divino é, também, responsável pela conservação para a salvação” (p. 413-417).

Para a tradição luterana, a santificação (que é interna) não pode ser a base da certeza da salvação, mas a segurança da salvação é dada externamente, na Palavra e nos sacramentos. Como Lutero afirmou no Catecismo Maior: “Assim, a fé se apega à água, crendo que é o batismo, em que há pura salvação e vida. (...) Não pela água, mas (...) porque está unida à palavra e ordem de Deus... (...) Se creio isso, em que outra coisa creio senão em Deus, como aquele que deu e implantou sua palavra no batismo... (...) De forma nenhuma se há de considerar o sacramento como se fosse coisa prejudicial, da qual cumprisse fugir, mas como medicina inteiramente salutar [ou salvadora] e consoladora, que te ajuda e te dá a vida tanto na alma quanto no corpo”.

3. Sobre Lutero, deve ser óbvio, a esta altura, que é muito mais fácil afirmar que supostamente houve mudança ou abrandamento no pensamento do reformador do que interagir com a vigorosa exegese que ele ofereceu ao texto bíblico, não só em Da vontade cativa, mas também em suas preleções à Epístola do Bem-aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos e no Comentário à Epístola aos Gálatas. Curiosamente, uma editora nacional publicou no Brasil a obra editada por E. Gordon Rupp e Philip S. Watson, Luther and Erasmus: Free Will and Salvation, sem o texto do reformador alemão (o título nacional é Erasmo: livre-arbítrio e salvação). Assim sendo, me parece apropriado encerrar com uma citação do Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos, escrita em 1522, e revisada e adaptada em 1546, ano da morte do reformador:

“Nos capítulos 9, 10 e 11, (...) [Paulo] ensina a eterna predeterminação de Deus. Desse conceito provém originalmente a distinção entre quem há de crer e quem não há, quem se pode livrar de pecados ou não. Com ele está de todo fora do nosso alcance e exclusivamente nas mãos de Deus, que nos tornemos retos. E isso é de suma necessidade. Pois somos tão fracos e inseguros que, se dependesse de nós, naturalmente nem uma pessoa sequer se salvaria e o diabo com certeza a todas sobrepujaria. Mas, como para Deus é certo que não falhará aquilo que ele predetermina, tampouco alguém o pode impedir, ainda temos esperança contra o pecado.
Entretanto, há que se pôr um limite aos espíritos injuriosos e arrogantes que, primeiro, dirigem seu raciocínio para este ponto, começam por pesquisar o abismo da predeterminação divina e se preocupam em vão com a pergunta, se estão predeterminados. Esses então têm que se humilhar a si mesmos de forma a desesperar ou a pôr tudo em jogo. Tu, porém, segue esta carta em sua sequência, ocupa-te primeiro com Cristo e o Evangelho. Nele, reconhecerás teu pecado e a graça do Evangelho. Em seguida, combate o pecado, como o ensinaram aqui os caps. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8. Depois, tendo chegado ao 8º capítulo, sob cruz e sofrimento, isso te ensinará a entender tão bem a predeterminação nos cap. 9, 10 e 11. E como ela é consoladora! Pois, sem sofrimento, cruz e aflições de morte não se pode tratar da predeterminação, sem juízo e indignação oculta contra Deus. Por isso, o [velho] Adão precisa estar morto antes de suportar essa coisa e tomar o vinho forte. Toma cuidado, portanto, que não bebas vinho enquanto ainda és lactente. Todo ensinamento tem sua medida, tempo e idade” (OS 8, 139).

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Autor: Franklin Ferreira
Divulgação: Bereianos

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Uma avaliação do artigo "Em defesa do arminianismo"
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