Um pequeno ensaio sobre o Sola Scriptura

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Em comemoração aos 499 anos da Reforma Protestante, neste vídeo Erving Ximendes ilustra um pequeno ensaio sobre o Sola Scriptura. Assista:


Transcrição:

Em 2016 completamos 499 anos de Reforma Protestante. No entanto, ainda hoje existem controvérsias relacionadas aos princípios que os reformadores resgataram. Dentre eles, o Sola Scriptura é provavelmente o mais debatido e boa parte disso se deve, na verdade, a definições errôneas do Sola Scriptura.

Sola Scriptura literalmente significa “Somente as Escrituras”. Isso não quer dizer que consideramos as Escrituras como algo isolado da obra do Espírito de Deus dentro da Igreja.  Nada poderia estar mais longe da verdade pois sabemos que a Palavra é divina, e o Espírito que a deu não irá separá-la de sua obra-prima. Até mesmo as verdades mais claras contidas na Bíblia, que para a mente renovada e para o coração regenerado parecem tão convincentes, continuam sendo “loucura” e “pedra de tropeço” para aqueles que não tiveram a obra regeneradora do Espírito Santo em seus corações.

Sola Scriptura mais precisamente significa que “Somente as Escrituras são a única regra de fé infalível para a Igreja” e por “regra de fé” entendemos aquilo que governa e guia o que acreditamos assim como as razões pelas quais acreditamos.

É muito fácil entender o porquê as religiões dos homens negam essa verdade, pois o corolário do Sola Scriptura é que tudo aquilo que uma pessoa precisa acreditar para ser um crente em Jesus está contido na Bíblia (e em nenhuma outra fonte). Logo, se as Escrituras nos foram dadas pelo Espírito Santo, então elas são obrigatórias ao coração e à consciência do crente. Nós não podemos escolher aquilo que vamos ou não acreditar. Como bem afirma a Confissão de Fé Batista de Londres de 1689, uma das muitas Confissões Reformadas que são extremamente claras sobre o assunto:

“A autoridade da Sagrada Escritura, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas provém inteiramente de Deus, sendo Ele mesmo a verdade e o seu autor. A Escritura, portanto, tem que ser recebida, por ser a Palavra de Deus”. (CFBL 1689 1:4)

Ou seja, uma vez que sabemos que Deus é Seu Autor, não existe autoridade mais alta que possa atestar a verdade das Escrituras. Afirmar a necessidade de uma autoridade terrena para estabelecer tanto a veracidade quanto o conteúdo da Bíblia é como dizer que o testamento de um homem só é legítimo se tiver o consentimento de seus filhos. No entanto, sabemos muito bem que o fator determinante naquilo que se trata da legitimidade de um testamento não é a recepção do documento por parte de seus filhos, mas sim a assinatura do homem em questão.

Sendo um pouco mais específica sobre o princípio do Sola Scriptura, a Confissão prossegue dizendo:

“A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência. A luz da natureza, e as obras da criação e da providência, manifestam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de tal modo que os homens ficam inescusáveis; contudo não são suficientes para dar conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário para a salvação. Por isso, em diversos tempos e por diferentes modos, o Senhor foi servido revelar-se a si mesmo e declarar sua vontade à sua igreja. E para a melhor preservação e propagação da verdade, e o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja, contra a corrupção da carne e a malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazer escrever por completo todo esse conhecimento de Deus e revelação de sua vontade necessários à salvação; o que torna a Escritura indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos em que Deus revelava sua vontade a seu povo”. (CFBL 1689 1:1-4)

Essas palavras foram escolhidas com muito cuidado, então preste muita atenção: suficiente, certa e infalível. Três atributos das Sagradas Escrituras que nada mais nesse mundo pode possuir. Teste qualquer outro candidato ao trono de fidelidade da igreja, e você vai descobrir que ele não é suficiente em seu âmbito e matéria, não é certo em sua natureza e conteúdo nem é infalível em sua consistência e autoridade.


A confissão também reconhece a existência de uma revelação geral presente na natureza, mas, ainda assim, ela corretamente afirma que tal revelação é insuficiente para transmitir o evangelho e que ao invés disso Deus escolheu colocar sua verdade na escrita. Porquê? “para a melhor preservação e propagação da verdade, e o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja”.

Esteja também atento ao que a Escritura é suficiente para revelar: o conhecimento para a salvação, de fé e de obediência. Obviamente, aqui não estamos afirmando que a Bíblia é o depósito completo de todo o conhecimento humano e divino. Ela é manifestamente limitada a partir do lado divino, uma vez que “as coisas encobertas pertencem a Deus” (Deut. 29:29), assim como do lado humano, isto é, a Bíblia não contém tudo o que é necessário saber para realizar uma cirurgia cerebral ou para entender física quântica. Logo, os argumentos que demonstram que a Bíblia não é capaz de fazer essas coisas não são argumentos contra o Sola Scriptura mas contra um espantalho criado por seus oponentes.

Outro argumento feito pelos opositores desse princípio é pronunciado mais ou menos da seguinte maneira:

“Existe apenas uma igreja verdadeira: a Igreja Católica Apostólica Romana! Agora, eu desafio você a olhar para o protestantismo e contar quantas denominações existem. Não parece óbvio que o Sola Scriptura só causou confusão?”

O problema nesse argumento é que ele falha miseravelmente em cada nível possível. Em primeiro lugar, como é que o apologista católico romano pode demonstrar que o
Sola Scriptura é a real causa dessas divisões? Por exemplo, quando vemos divisões nas diversas classes da igreja romana, encontramos fortes divergências em relação a questões-chaves. Será que podemos concluir então que o magistério romano é o culpado pelas diferenças de ponto de vista? Creio eu que não. Como é que se pode então chegar à conclusão de que um abuso das Sagradas Escrituras pode ser usado como um argumento contra sua suficiência? Isso não é nem um pouco lógico. As Escrituras podem ser perfeitamente suficientes, mas ainda assim os homens são pecadores. Ainda assim os homens são imperfeitos. Ainda assim os homens ainda são ignorantes. E, mais importante, ainda assim os homens possuem tradições.

Talvez isso fique um pouco mais claro com uma ilustração. Se você tem alguns anos de experiência com computadores, provavelmente já passou pela experiência de trocar de impressora. A maioria de nós apenas abre a caixa, lê as primeiras frases do manual e começa a conectá-la para ver se funciona. Uma vez impresso o primeiro documento, assumimos que ela funcionará da mesma maneira que nossa impressora antiga. O problema é que mais cedo ou mais tarde iremos nos deparar com situações complicadas. E isso tudo porque assumimos que nossa experiência era suficiente para fazer a impressora funcionar corretamente e porque não deixamos o manual falar por si mesmo.

De maneira semelhante, ir até as Escrituras com nossas tradições é como transferir nossa experiência com a impressora antiga para a nova. O fato de você assumir que a impressora funcionaria de uma determina maneira obviamente não torna o manual de instruções culpado. Tampouco ele seria responsável por esses problemas se você escolhesse a dedo as seções do manual que iria ler. Ou seja, é possível ter um manual de instruções perfeitamente claro e conciso e ainda assim haver consumidores que utilizem a impressora incorretamente. E aí está o cerne da questão, quem professa o Sola Scriptura sabe que Deus escreveu o manual de instruções com clareza. Os que abraçam uma autoridade externa à Bíblia não. E isso e bem refletido nas seguintes palavras do escritor católico Gilbert Chesterton, “a Bíblia por si mesma não pode ser a base do acordo quando ela é a causa do desacordo”.

Em segundo lugar está a observação (dolorosamente óbvia) de que apenas uma pequena porcentagem das igrejas “protestantes” de hoje conscientemente se interessam em professar a doutrina do Sola Scriptura. Para falar a verdade, um grande número de igrejas não-católicas abraçam diversos tipos de conceitos que claramente violam o Sola Scriptura. Alguém que consistentemente se professa como Protestante acredita não somente que Deus falou através dos profetas e apóstolos mas também que Ele falou com suficiência e clareza. No momento em que alguém abandona um desses pontos, esse alguém não pode ser considerado um protestante coerente. O alto número de denominações existentes não se dá por causa do Sola Scriptura, mas apesar dele. Sendo assim, como é que se pode responsabilizar o princípio pelas ações daqueles que sequer acreditam nele? Obviamente, não podemos! Na realidade, as igrejas que procuram de fato professar, confessar e aplicar o Sola Scriptura são significativamente mais próximas em sua teologia do que aquelas igrejas que procuram uma fonte externa e inspirada de interpretação e revelação.

Tendo em vista tudo o que temos dito até então, eu espero que esse curto ensaio venha a ser um pequeno passo em direção a um melhor debate sobre a natureza, suficiência e necessidade das Escrituras dentro da comunidade cristã brasileira. 

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Autor: Erving Ximendes
Fonte: Olhai e Vivei
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