Antropologia e Política sob Perspectiva - Uma Avaliação Teológica

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É um erro supor que todos os homens, ou ao menos todos os ingleses, queiram ser livres. Ao contrário, se a liberdade acarretar responsabilidade, muitos não querem nenhuma das duas. Felizes, trocariam a liberdade por uma segurança modesta (ainda que ilusória). Mesmo aqueles que dizem apreciar a liberdade ficam muito pouco entusiasmados quando se trata de aceitar as consequências dos atos. O propósito oculto de milhões de pessoas é ser livre para fazer, sem mais nem menos, o que quiserem e ter alguém para assumir quando as coisas derem errado.[1] — Theodore Dalrymple

Introdução

O objetivo do presente texto é discutir sobre a importância da antropologia na conceituação política e na formação da ideologia. O pressuposto teórico utilizado aqui é o da antropologia teológica da teologia reformada calvinista. Tomando como herança o que está registrado no Novo Testamento e também foi defendido por Agostinho, Calvino, Lutero, Bucer, Knox, Beza, os puritanos e também descrito nos símbolos de fé das igrejas reformadas a respeito na criação, queda e redenção da humanidade. A leitura feita na presente discussão é desenvolvida num pano de fundo canônico-linguístico em oposição a uma hermenêutica linguístico-cultural que interpreta o texto sagrado pela experiência da comunidade.[2] A ferramenta utilizada é uma hermenêutica canônica que toma por base a própria Bíblia, ou seja, a Palavra de Deus determina a interpretação de si mesma e não recebe, de forma ad extra, imputação autoritativa para a interpretação. Por isso, a importância de fixarmos qual o ponto fundamental e a partir dele analisarei às várias propostas antropológicas, tomando-as como matéria prima para um desenvolvimento de filosofias políticas e politizações ideológicas que divergem com a ortodoxia cristã.

Antropologia política

Ao examinarmos as formulações e os empregos das ideologias políticas das mais variadas escolas de pensamentos, é corrente notar que todo e qualquer ideário de teoria política e de práxis política é um reflexo de uma visão ou visões antropológicas. Uma identificação desses fatores nos ajudam a formularmos um diagnóstico do cenário político em qualquer época, independente da postura de direita ou esquerda no governo vigente. Essa identificação nos dá condições de estabelecermos uma comparação com as doutrinas bíblicas da teontologia e da antropologia teológica. Essa visão comparada nos leva a uma postura bíblico-teológica que atende aos anseios de respostas de cristãos aos problemas políticos que surgem no cenário social das mais variadas esferas de atuação. 

O presente artigo propõe um estudo comparativo na área de antropologia e política com a antropologia teológica. A abordagem partirá de um arcabouço sócio-antropológico expresso nas últimas décadas, tratando com ideologias recentes e presentes em nossa sociedade, principalmente no que tange a nossa realidade no Brasil. O trabalho será desenvolvido com uma base teórica na teologia sistemática e nas reflexões de autores reformados sobre a doutrina da humanidade e tenta responder a questões fundamentais na formação de um pensamento cristão da política que deve ter uma correta compreensão de Deus e da humanidade. A confusão e a má compreensão dessas duas doutrinas bíblicas, põe de pé ou derruba uma compreensão correta da política e também da postura da igreja frente aos problemas sociais como pobreza, injustiça social, corrupção, luta de classes, sexismo, liberalismo moral e comunismo. 

A presente ideologia do marxismo cultural tem contribuído para uma aceleração da desconstrução de quem é o homem e qual deve ser sua postura ante seu Criador. O problema não é apenas social, mas, apologético. Por isso, é necessário uma apologética cristã cultural que atenda a nossa realidade. Perguntas têm sido feitas e precisam de respostas que atendam a demanda do debate político, e a igreja tem as respostas que estão na Palavra de Deus. A história do pensamento cristão nos mostra de forma muito clara que uma má compressão de quem é Deus e de quem é o homem pode levar uma geração a um abismo moral, social, político e religioso. A cosmovisão cristã é a única forma correta de enxergar o mundo, por conta da queda à percepção da realidade foi alterada, nouteticamente o homem não poderá – com base apenas na razão sem a iluminação da revelação de Deus – ter uma completa compreensão da verdade, visto estar morto em seus delitos e pecados. Portanto, um estudo à luz da Escritura do que é o homem e sua posição perante Deus ajudará a apontar caminhos para uma política conservadora dos padrões judaico-cristãos.

Quando temos um reducionismo do que é o homem e a mulher, teremos uma inevitável alteração nas bases da família, da sociedade, na educação formal, na religião e na esfera política. Não há como termos uma compreensão justa e correta da sociedade sem ter uma visão da completude do que o homem é. Uma má formulação antropológica gera um fundamento antropológico ideológico que, consequentemente, é idólatra. 

Numa pontuação importante sobre a doutrina da humanidade, Millard Erikson diz em sua Introdução a Teologia Sistemática que:

A doutrina da humanidade é um assunto particularmente oportuno para estudar e utilizar em nosso diálogo com o mundo não-cristão. Trata-se de uma área em que a cultura contemporânea vive perpetuamente fazendo perguntas a que a mensagem cristã pode oferecer respostas. Pelo fato de muitas disciplinas estudarem a natureza humana, há muitas imagens diferentes da humanidade.[3]

Essas imagens que nos diz Erikson é o nosso campo de trabalho, tais imagens formuladas irão, consequentemente, gerar cosmovisões. À medida que a compreensão do homem sobre si mesmo é errada, isso resultará em cosmovisões distorcidas. Essa correnteza que vai do pensamento ou da compreensão sobre a humanidade para a vida prática desembocará em resultados lógicos:

Existe um fluxo para a História e para a Cultura. E o modo de pensar das pessoas é o fundamento e a fonte deste fluxo. As pessoas são únicas no mundo interior da mente – o que elas são em seu mundo de pensamentos determina como elas agem. Isso é verdade tanto para o seu conjunto de valores quanto o é para a sua criatividade. É verdade para as suas ações coletivas, tais como suas decisões políticas, e é verdade para sua vida pessoal. As consequências da sua visão de mundo fluem por entre os seus dedos ou por meio da sua língua em direção ao mundo de fora. É verdade tanto para o formão de Michelangelo quanto para a espada de um ditador.[4] 

Fica claro na colocação de Schaeffer que a atuação humana nas mais variadas camadas é fruto de seu pensamento sobre si e sobre o mundo. Quando há somente uma síntese do que é o homem haverá uma inadequação da humanidade, a realidade primeira e última para qual o homem foi criado, a necessidade de uma antítese para a compreensão correta da realidade é vital para um pensamento filosófico. Dooyeweerd diz que:

O desenvolvimento da cultura ocidental tem sido controlado por vários motivos religiosos básicos. Os mais importantes desses poderes foram o espírito da civilização antiga (Grécia e Roma), o cristianismo e o moderno humanismo. Uma vez que cada um desses entrou na História, permaneceu em tensão com os outros. Essa tensão nunca foi resolvida por um tipo de “equilíbrio de poderes”, porque o desenvolvimento cultural, para que possa ser ininterrupto, sempre exige um poder predominante.[5] 

Antropologia e Filosofia Política

Não há filosofia sem pressupostos religiosos. Haverá uma formulação a partir de algum ponto pressuposto e, inevitavelmente, uma guerra intelectual para o emprego de um pensamento que seja útil, mas, o grande problema é que ser útil não significa ser verdadeiro. Essa tensão dita por Dooyeweerd irá sempre existir e, por isso, é necessário uma posição do Cristianismo diante dos desafios da guerra cultural. A abordagem de Millard Erikson sobre a doutrina da humanidade em sua Teologia Sistemática nos dá uma luz no que se refere à importância de considerarmos as influências de uma antropologia errada no pensamento político de uma nação. Erikson lista alguns pontos fundamentais para uma observação adequada de como uma formulação antropológica errada pode conduzir a ideologias equivocadas e antibíblicas, ele nos fala de o homem como uma máquina, como um animal, como um ser sexual, como um ser econômico, como um peão do universo, como um ser livre, como um ser social. É importante considerar que alguns dos aspectos listados por Erikson são presentes na constituição humana naturalmente como a sociabilidade, economicidade, sexualidade e liberdade. No entanto, o autor trata consideravelmente de um reducionismo em relação a essas questões, o ser humano não é somente isso, nem apenas isso. Em Gênesis 1.26-30 temos a clássica passagem que trata dos mandatos da criação – mandato cultural, social e espiritual – ao fazermos uma análise comparativa entre o que nos ensina a Bíblia sobre os mandatos, as obrigações da humanidade para com Deus e com sua criação, veremos que essas ideologias são distorções do que foi ordenado ao homem e a mulher no jardim. 

“Os seres humanos são, às vezes, vistos como máquinas, e isso se evidencia principalmente quando a automação resulta na demissão de um trabalhador”.[6] Esse conceito vai desenvolver-se num reducionismo utilitário e pragmático – e também desumano – de colocar o homem como uma máquina para a produção. O segundo conceito mencionado pelo autor é o que coloca o ser humano como um animal. Nos diz, então, que:

Outro conceito vê o ser humano essencialmente como membro do reino animal e derivado de alguma de suas formas de vida mais elevadas. O homem e a mulher passaram a existir por meio de algum tipo de processo semelhante ao de todos os outros animais, e seu fim será o mesmo. Não há diferença qualitativa entre os humanos e os outros animais. A única diferença é de grau: uma estrutura física diferente, não necessariamente superior, uma capacidade craniana maior e um mecanismo de estímulo-resposta mais desenvolvido. [7]

É na psicologia behaviorista que esse conceito do ser humano apresenta sua forma mais elaborada. A motivação humana é compreendida principalmente em termos de impulsos biológicos. 

O Reducionismo Ideológico

Percebamos que tal visão do homem o diminui, o priva do que realmente ele é, o deixa numa condição de um determinismo biológico que, evidentemente, na continuação lógica desse raciocínio psicossocial, irá aniquilar a presença do pecado no homem. Pelo simples fato de ele ter uma determinação animal que estará calcada num evolucionismo biológico, a evolução das espécies está bem presente nesse conceito do homem, claro que temos um problema com a questão do homem como parte do reino animal quando Gênesis nos diz claramente que Deus o criou (Gn 1.27). O evolucionismo biológico dará margem para o evolucionismo social e para a revolução afetiva, sexismo, ideologia de gênero e demais filosofias sexistas que são claramente antibíblicas. 

Hoje, muitos evolucionistas concordariam com isso. Uma das disciplinas que mais cresce atualmente é a aplicação do darwinismo a assuntos sociais e culturais. Conhecido pelo nome de psicologia evolutiva (versão melhorada da sociobiologia), sua premissa é que a seleção natural produziu o corpo humano, então também tem de explicar todos os aspectos da crença e comportamento humano. A psicologia evolutiva está se espalhando depressa em quase toda área de estudo, com publicações de livros em uma velocidade difícil de acompanhar. 
Um dos tópicos mais abordados é a moralidade. Afinal de contas, se o comportamento humano é programado basicamente por “genes egoístas” (como argumenta Dawkins, em O Gene Egoísta), então fica bastante difícil explicar o comportamento desinteressado ou altruísta. Muitos livros publicados procuram explicar que a moralidade é produto da seleção natural. O tema é que aprendemos a ser amáveis e prestativos, só porque serve para nossa sobrevivência e gera mais descendência.
Se a seleção natural é a razão de sermos bons, então também é a razão de sermos ruins. [...] Os genes fizeram com essas pessoas agissem assim. A religião é outro alvo favorito. Nesse tópico, o tema básico é que a religião é uma disfunção a que o cérebro está suscetível quando o sistema nervoso evolui a certo nível de complexidade.
A literatura acadêmica que tem tratado da questão evolucionista, ampliando-a em um prisma moral, não é somente restrita aos círculos acadêmicos, mas, implantada também nos projetos de lei, as investidas de pensadores políticos ligados principalmente a uma agenda Gramicista/revolucionária, levará isso até às últimas consequências. [9]

Cosmovisão e Política

Toda cosmovisão resultará em consequências espirituais, morais, sociais, políticas e causará considerável mudança e/ou desestruturação familiar. O que podemos avaliar com base nas raízes das cosmovisões e nos pressupostos que ancoram cada uma delas é que toda cosmovisão que não seja teo-referente, no mínimo terá um déficit em sua epistemologia. A verdade revelada nas Escrituras é um fator fundamental para uma compreensão do que é ou não verdade a respeito do homem. Ao falarmos de verdade com fundamentação teológica nos escritos apostólicos estamos falando também de uma realidade epistemológica, de uma possibilidade de conhecer a realidade sobre o ser, que somente pode ser dada cabalmente pela Palavra de Deus. Logo, podemos chegar à conclusão que quando temos uma falsa imagem de quem o homem é, teremos uma falsa perspectiva sobre sociedade e sobre política. A influência cristã na formação da cultura ocidental é imprescindível. O legado provindo da reflexão teológica e filosófica do pensamento cristão é caro, principalmente ao ocidente.

Mais um exemplo claro que podemos listar é que numa cosmovisão antropológica que descola o homem de sua humanidade e o coisifica, causa uma ruptura de padrões criacionais que foram estabelecidos na criação da humanidade. Ao refletirmos sobre a questão da ideologia de gênero, por exemplo, temos nessa cosmovisão uma deturpação antropológica do que é o homem e a mulher e suas funções na criação e no mundo de Deus. Há uma negação filosófica e teológica, há um desfoque epistemológico e ontológico no que é a humanidade. Há uma negação da verdade, da realidade e da autoridade. Tal cosmovisão parte de uma análise antropológica experiencial que procura trabalhar em cima de uma negação do ser, no que se refere a sua característica criacional e qual é a finalidade de sua existência. Temos, de fato, um posicionamento que aloja o ser humano em uma grade de pragmatismo, utilitarismo e niilismo.

A cosmovisão cristã mostrará que há um sentido último para a existência, há uma condução criacional revelada para a ordem, convivência e proliferação da humanidade. Toda ideologia irá de encontro aos mandatos da criação. Toda antropologia divorciada do que a antropologia teológica afirma com base na revelação de Deus é uma violação aos mandatos cultural, social e espiritual.

A Bíblia nos apresenta uma cosmovisão, uma percepção de mundo fundamentada no pacto de Deus com seu povo escolhido. Uma cosmovisão histórico-redentiva, imprescindivelmente, irá responder questões referentes a todas as esferas, seja na economia, psicologia, antropologia, sociologia, filosofia, política e qualquer manifestação comunicativa do homem. A centralidade de Cristo como eixo fundamental na história da salvação revela os grandes erros e equívocos de cosmovisões opostas ao cristianismo. A teologia como fundamento para uma correta interpretação de fatores sociais irá fornecer os princípios e direções para a aplicabilidade da cosmovisão pactual. Sem o reconhecimento que existe uma ontologia a ser considerada no lastro das Escrituras e uma antropologia que mostra a vileza do homem pecador com base nas Escrituras cristãs, não há como haver ordem política do ponto de vista moral.

Ao lidarmos com essa concepção plástica da modernidade sobre o homem podemos constatar que temos um problema inicial básico de antropologia – a natureza do homem. Esse fato irá alterar ou reiterar qualquer visão política. É evidente que nosso objetivo com este artigo não é tratar sobre as ramificações possíveis no pensamento cristão sobre o homem, mas, notificar que a questão da natureza do homem é de grande importância para o desenvolvimento de uma boa antropologia e, consequentemente, de um saudável pensamento político. A teologia reformada tem trabalhado isso com notável competência na história da Igreja. Quando o homem é reconhecido como imagem e semelhança de Deus, que ele pecou e sua queda o destruiu da glória de Deus e que ele precisa de redenção; isso muda toda perspectiva social sobre o papel do homem no mundo. Essa visão histórico-redentiva é uma luz para a formulação de teorias políticas que tem como fundamento a ordem criacional e redentora mostrada na Bíblia. O que os filósofos e teólogos neocalvinistas da escola holandesa tem chamado de Soberania das Esferas.

Toda ideologia política que é fruto de formulações antropológicas, sociológicas e que acabam desembocando em teorias psico-políticas e bio-políticas são também de intenção redentora e que entronizam de alguma forma uma divindade. Por isso, toda ideologia é uma forma de idolatria. Um pensamento político teocêntrico desenvolve uma reflexão transcendental contrapondo-se a uma imanência soberana do homem e dos perigos do historicismo e do cientificismo que acabam ditando normas para o debate político que, por sua vez, são desdobramentos de um agendamento político imperial que visa estatizar e ter, a cada dia de forma mais intensa, a presença do Estado na vida social e a interferência na vida pessoal de cada cidadão. Referindo-se a malfazeja situação do homem moderno, Richard M. Weaver nos diz que:

Há razões para afirmar que o homem moderno tornou-se um imbecil moral. São tão poucos aqueles que se preocupam com o exame de suas vidas – ou que aceitam a reprovação que advém da admissão de que nossa situação atual talvez seja decadente –, que alguém pode se perguntar se as pessoas compreendem agora o que significa a superioridade de um ideal. Alguém pode pensar que as pessoas perderam o raciocínio abstrato; mas o que esse alguém deve pensar quando testemunhos dos tipos mais concretos são colocados diante delas e mesmo assim elas são incapazes de perceber uma diferença ou tirar uma lição? Por quatro séculos, cada homem tem sido não apenas seu próprio sacerdote, mas seu próprio professor de ética, e a consequência disso é uma anarquia que ameaça inclusive aquele consenso mínimo de valores necessário ao Estado. [10]

Essa questão da atual posição que o homem moderno se colocou é, sem duvida, fruto do desdobramento do iluminismo e da autocentralidade do individuo, negando o verdadeiro motivo básico para a existência, a autonomia do pensamento responsável por modificar também a autocompreensão do homem na atual conjuntura. Como já foi colocado anteriormente, a questão da queda é um ponto chave para uma compreensão do papel da política e do homem imerso na comunidade, que compartilha a vida, valores e problemas, a queda é um ponto chave para uma teoria social devidamente coerente com as ações humanas, antecipada evidentemente pela referência que uma sociedade deve ter de Deus. 

Não existe termo apropriado para descrever a situação em que o homem se encontra agora, exceto a noção de "abismalidade". Ele encontra-se em um profundo e escuro abismo e não dispõe de nada que lhe permita erguer-se. Sua vida é uma prática sem teoria. Quando problemas amontoam-se ao seu redor, ele intensifica a confusão opondo-se a eles com políticas ad hoc. Ele anseia secretamente pela verdade, mas consola-se com a ideia de que a vida deveria ser experimental. Ele vê suas instituições desintegrando-se e raciocina com discursos sobre emancipação. Guerras têm de ser feitas, aparentemente com frequência cada vez maior; portanto, ele ressuscita os velhos ideais - que, na verdade, são tidos como sem sentido por suas atuais hipóteses - e, por meio da maquinaria do Estado, força-os a servir-lhe novamente. Ele debate-se com o paradoxo de que a imersão total na matéria lhe deixa incapacitado para lidar com os problemas relacionados a ela.[11]

Como bem notou o filósofo Luiz Felipe Pondé sobre o mergulho do homem em si, “Na presença de Deus, quando o ser humano mergulha dentro de si, ao invés de encontrar a superfície plana e familiar de seus sentimentos e emoções cotidianas, depara-se com um abismo que se agiganta cada vez mais”.[12] Por isso o homem precisa ter uma referência do Deus descrito na Bíblia e da sua revelação na Escritura. A ideologia como consequência de uma visão redentiva resulta de uma antropologia inglória, de somenos importância, é um reducionismo da natureza e do propósito da existência humana, a ideologia é fracassada em descrever com completude a abrangência e a real necessidade do homem.

A ideologia é a doença, não a cura. Todas as ideologias, incluindo a ideologia da vox popoli vox Dei, são hostis à permanência da ordem, da liberdade e da justiça. A ideologia é a política da irracionalidade apaixonada.[13]

Como tratado anteriormente, a questão vai atingir a concepção de realidade que temos. Se temos uma visão otimista da política, abraçamos de forma ingênua uma visão redentora através da operação politizante, a questão cirúrgica aqui é notificar que há uma construção irreal no que as ideologias têm dito a respeito da real necessidade do homem, seja ela de cunho totalmente político ou com uma vertente religiosa que deságua no mesmo mar. Roger Scruton, filósofo britânico que trata da questão, diz que:

Há uma espécie de vício na irrealidade que revela as formas mais destrutivas de otimismo: um desejo de anular a realidade, como a premissa a partir da qual a razão prática começa, e substituí-la por um sistema de ilusões complacentes.[14]

Antropologia e Sociedade

O cristianismo, portanto, não deve ter uma agenda comprometida doutrinariamente com as ideologias, pelo fato de que as manifestações ideológicas construídas numa ciência política que defrauda a revelação de Deus é uma abordagem autônoma, que vai de encontro ao que diz a Sagrada Escritura sobre como a sociedade deve ser regida. Ideologia é entendida como um discurso de poder que refaz o caminho da realidade, usando pressupostos que levarão a um axioma alterado no que se refere a cosmovisão baseada na Bíblia. Então, com quê base podemos dizer que esta questão pressuposicional é importante e como tais pressuposições sobre uma antropologia filosófica e teológica são decisivas, na formação da correta concepção sobre o homem político? Vejamos. 

A ideologia vai lidar com axiomas, quando esta estabelece um axioma ontológico que refere ao ser, ela obstrui e substitui a divindade.[15] Temos no cristianismo dois axiomas básicos para a compreensão filosófica da fé cristã como corpo epistemológico, que nos dará base para uma correta análise antropológica e como isso se desenvolve no âmbito da teologia e da filosofia política por um prisma cristão. O axioma ontológico do cristianismo é Deus. O axioma epistemológico do cristianismo é a Escritura. A ideologia vai substituir esses axiomas, estabelecendo uma nova fundamentação filosófica que perpasse a vida humana e redima os flagelos e moléstias sociais. Temos, então, uma clara estabilização de falsos deuses para uma cosmovisão. Por isso toda ideologia é idolatria. Temos uma substituição axiomática e também axiológica.[16] Ao tratar da importância da antropologia no pensamento sócio/político, Sowell nos diz que:

Diferenças na visão da natureza humana refletem-se em diferenças na visão dos processos sociais. Isso não significa apenas que os processos sociais são vistos como atenuadores das fraquezas da natureza humana em uma visão e como agravadores em outra. A própria forma de funcionar e de não funcionar dos processos sociais é vista de modo diferente  [...] Os processos sociais englobam uma enorme gama de elementos, do idioma à guerra, do amor aos sistemas econômicos.[17] 

Então, quando temos uma corrupção da correta abordagem sobre a natureza humana isso afetará todo arcabouço teórico e prático da funcionalidade social, política e comportamental da vida. O perigo que se incorre é colocar de forma absoluta o ato político sem pensar em consequências, simplesmente porque foi mudada a estrutura fundamental para compressão do fundamento do estudo político, o homem. Mas, do ponto de vista cristão na verdade, o ponto para se começar a pensar em política não é o homem, mas, Deus. Especificamente o Deus triúno revelado nas Santas Escrituras, na sua unidade (individualidade) e trindade (pluralidade) que é autossuficiente n’Ele mesmo e o nosso modelo perfeito de relacionamento para sociedade. A criação do homem e nele posta a Imago Dei é um reflexo dessa perfeição na Trindade.

Uma das pressuposições básicas da concepção cristã do homem é a fé em Deus como criador, que conduz à compreensão de que a pessoa humana não existe autônoma ou independentemente, mas como uma criatura de Deus. “No princípio criou Deus os céus e a terra... Criou Deus, pois, o homem” (Gn 1.1,27).[18]

Essa pertinente colocação de Hoekema é de grande valor para compreensão de que somente o cristianismo bíblico tem as devidas respostas para uma correta conceituação do que o homem é e como deve viver em sociedade. Sem a prescrição cristã para vida social e sem seus pressupostos para uma ética política coerente com a estrutura humana criada por Deus teremos ídolos e ideologias. A política não será plenamente compreendida sem as instruções do Criador do homem e o quê o estruturou para relacionar-se em sociedade. Razzo diz:

Nem tudo se resolve no ato político. A política diz respeito apenas a uma parte da nossa natureza: nem a mais nem a menos importante. Como promessa, política só pode ser mediação relativa. Jamais redenção. Nesse caso a ação política não pode ser o ato final da experiência humana em superar sua condição mortal. A solidariedade de toda comunhão humana em sociedade, dada pela forma de relação profunda da experiência consciente de nossa mortalidade, fragilidade e finitude, não começa ou se encerra no ato político. Essa foi, tem sido e continuará sendo a trágica tarefa do mito da redução total da política como esperança.[19]

Portanto, o que ocorrerá se não tivermos uma correta concepção do homem quanto à imagem de Deus? Teremos uma evidente e crescente corrupção do que é a sociedade e o que é o homem político. E um dos perigos é o totalitarismo que podemos pontuar como um comportamento e uma disposição mental autoconfirmatória que enaltece o desejo pessoal de forma intransigente ou comunitário, sendo então, manifesto no homem individual e no homem coletivo como igrejas, partidos, agremiações, tribos, etc.

Então, como entendemos que o totalitarismo tem um objetivo télico “Para a imaginação totalitária, essa seria a verdadeira vocação da política: salvar a todos e aniquilar a quem atrapalha” (RAZZO. 2016, p. 202). 

Conclusão

A falsa concepção da natureza humana afetará substancialmente a abordagem política e a ordem social. Nisto teremos a formação de ideologias e perversões da verdade sobre o homem criado. Bem como disse Dostóievski: Ora, sabes o que mais dá raiva? Não é o fato de mentirem; sempre se pode perdoar a mentira; a mentira é uma coisa simpática... Não, o deplorável é que mentem e ainda reverenciam a própria mentira.[20] Então, diante de tamanho caos na compressão do que é o homem e sua política, olhamos para a miséria moral e social do nosso país e podemos pensar então no que disse um grande escritor.

É claro que tal miserável história não acabaria somente nisso.[21]

___________________
Notas:
[1] DALRYMPLE, Therodore. A Vida na Sarjeta. É realizações Editora. São Paulo, SP. 2014, , p.28.
[2] VANHOOZER, Kevin. O Drama da Doutrina. Ed. Vida Nova. 2016.
[3] ERIKSON, Millard. Introdução a Teologia Sistemática, Ed. Vida Nova, São Paulo, SP. 2015, p.205.
[4] SCHAEFFER, Francis. Como Viveremos. Ed. Cultura Cristã. São Paulo, SP. 2ª edição 2013, p.7.
[5] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. Ed. Cultura Cristã, São Paulo, SP. 2015, p. 23.
[6] ERIKSON, Millard. Teologia Sistemática. Ed. Vida Nova, 2015, São Paulo, SP, p.455
[7] Ibid, pp. 456,457.
[8] PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta. Ed. CPAD. 2011. Rio de Janeiro, RJ, pp. 232,33.
[9] Uma mostra do que é a agenda revolucionária é que ela está presente nas atuais investidas nos meios de comunicação e na educação no Brasil. O gramcismo é presente na ideologia de esquerda principalmente de grandes partidos no país como o PT. As atas de fundação do partido deixam isso muito evidente e inquestionavelmente provado. As implementações de políticas educacionais revolucionárias são implantadas já a muitos anos no Brasil, vide o livro – Maquiavel Pedagogo de Pascal Bernardin – publicado no Brasil pela Vide Editorial. O leitor também pode conferir tal estratagema de guerrilha cultural no livro A Nova Era e a Revolução Cultural de Olavo de Carvalho publicado pela mesma editora. O que ocorre é uma investida pelas camadas sociais para que uma ideologia culturalista do marxismo encha todas as esferas possíveis as laudas preenchidas pelo ideário revolucionário estão em posições diversas na sociedade e nos mais variados campos do conhecimento. Não somente na área de educação, mas, também na superestrutura midiática que serve ao marxismo, principalmente ligado a escola de Frankfurt onde o pensamento revolucionário tomou grandes proporções filosóficas, antropológicas e sociológicas. 
[10] RICHARD M. Weaver – As Ideias Têm Consequências, 2012, é realizações, p.10.
[11] Ibd, p.15.
[12] PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e Profecia - A Filosofia da Religião em Dostoiévski. Ed. LeYa Brasil, p.129.
[13] KIRK, Russell. A Política da Prudência, É Realizações Editora, p.98.
[14] SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo. 2015, É Realizações, p.27.
[15] A questão gira em torno de Deus como Axioma ontológico, e partido desse axioma teremos uma epistemologia que desdobrará o que podemos compreender sobre o ser de Deus, no caso, as Escrituras. Na ideologia temos uma substituição disso que alterará de maneira significativa toda cosmovisão e antropologia. Esse fato é importante porque as pressuposições serão um retorno ao axioma, se temos um axioma que é a fundamentação ainda que não comprovável, mais, que sua comprovação pode encontrar na harmonia das informações dispostas, no caso, a epistemologia, teremos na Bíblia essa fonte epistemológica para o conhecimento e avaliação da validade do axioma cristão.
[16] É tudo aquilo que se refere a um conceito de valor.
[17] SOWELL, Thomas. Conflito de Visões. É Realizações Editora, p. 83. 
[18] HOEKEMA, Anthony. Criados a imagem de Deus. Ed. Cultura Cristã. 2ª Edição 2010. São Paulo , p.16.
[19] RAZZO, Francisco. A Imaginação Totalitária. Ed. Record, p. 222.
[20] Crime e Castigo. Ed. 34, p. 148.
[21] DOSTOIEVSKI, Fiódor. Diário do Subsolo. Ed. Martin Claret. São Paulo, SP. 2012,  p.64.

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Sobre o autor: Thomas Magnum é ministro evangélico. Pastor auxiliar na Igreja Congregacional em Casa Amarela. Graduado em Teologia e Comunicação Social. Mestrando em Teologia e graduando em Filosofia. É professor de teologia em vários seminários em Recife, jornalista e casado com Kelly Gleyssy. 
Divulgação: Bereianos
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