Semeando Honra?

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Por Ruy Cavalcante

Gostaria de fazer alguns comentários sobre uma doutrina apócrifa que vem ganhando bastante força no meio cristão ultimamente, especialmente na região norte do país, região onde me encontro. Trata-se dos princípios (ou leis) da semeadura e da honra.

Em respeito, não aos falsificadores do Evangelho, mas aos seus discípulos cegos, tentarei ser o mais impessoal possível em minha curta abordagem sobre o tema.

Ambos os princípios caminham juntos e possuem várias ramificações, porém dão destaque especial a questões de ordem financeira, geralmente (mas não somente) interligados ao que chamam de “primícias”. Meus comentários serão direcionados a estes pontos.

Resumidamente, afirmam que:

  • Através da semeadura você se conecta com o futuro;
  • O Senhor criou esse princípio para estabelecer a fidelidade e a fé;
  • Criou a oferta para estabelecer o princípio da honra. E estabeleceu a primícia como princípio de santidade.

Segundo afirma um de seus maiores defensores, os dízimos e ofertas são dados a Deus, para obtenção de prosperidade, mas as primícias são dadas ao líder espiritual (sacerdote) para estabelecer o princípio da honra. Através das primícias o discípulo honra o seu líder e ganha o respeito de Deus, uma vez que estão deixando o “sacerdote” liberado para cuidar das coisas de Deus, sem se preocupar com coisas “elementares”, como seu sustento e o de sua família.

O resultado disso? Enriquecimento dos líderes e uma busca desenfreada de se tornar líder também e ter o direito de ser honrado com “primícias”.

Uma das bases para essa doutrina encontra-se em Ezequiel 44:30:

E as primícias de todos os primeiros frutos de tudo, e toda a oblação de tudo, de todas as vossas oblações, serão dos sacerdotes; também as primeiras das vossas massas dareis ao sacerdote, para que faça repousar a bênção sobre a tua casa.”

Bem, considerando o caráter antitípico (Hb 10:1) do Antigo Testamento, onde os sacerdotes eram figuras de Cristo, temos hoje um único sacerdote no sentido original do termo, que é Jesus (Hb 5:6; Hb 7; Hb 8). Desta forma, se há alguém ainda digno de receber as primícias do homem, este se chama Jesus.

Entretanto a aliança definitiva que Deus fez com o homem está baseada em promessas superiores (Hb 8:6), assim como devemos entregar-lhes coisas superiores, e não apenas algum percentual de renda, mas a vida inteira (Mt 19:21; Lc 14:26: Hb 9:14).

Por isso Paulo afirma:

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. (1 Pd 2:9)

Tudo em nós pertence a Ele, pois somos sua propriedade exclusiva.

Ora, em última instância, segundo o mesmo texto de 1 Pedro 2:9, hoje somos todos sacerdotes e, sem tentar apelar para falácias, não há qualquer menção bíblica que indique haver entrega de primícias de um sacerdote a outro.

A verdade é que Jesus modificou as relações humanas referente à vida religiosa nos moldes do antigo testamento quando afirmou:

Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi; porque um só é o vosso Mestre, e todos vós sois irmãos. E a ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque um só é o vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem queirais ser chamados guias; porque um só é o vosso Guia, que é o Cristo. Mas o maior dentre vós há de ser vosso servo. Qualquer, pois, que a si mesmo se exaltar, será humilhado; e qualquer que a si mesmo se humilhar, será exaltado”. (Mt 23:8-12)

E continua:

Jesus, pois, chamou-os para junto de si e lhes disse: Sabeis que os governadores dos gentios os dominam, e os seus grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; antes, qualquer que entre vós quiser tornar-se grande, será esse o que vos sirva; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, será vosso servo; assim como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos”. (Mt 20:26-28)

E ainda:

Ai de vós, quando todos os homens vos louvarem! porque assim faziam os seus pais aos falsos profetas”. (Lc 6:26)



Desta forma, somos todos sacerdotes e irmãos, nosso Mestre, nosso Guia e nosso Senhor é um só, Jesus Cristo, somente Ele é digno de ser honrado, não apenas com primícias, mas com tudo o que temos e somos eternamente.

Estas doutrinas são totalmente alheias ao Evangelho de Cristo, são aberrações que possuem o claro objetivo de sacralizar a prosperidade e justificar o enriquecimento às custas do serviço cristão, como se "viver do Evangelho" significasse ganhar dinheiro por meio dele.

Quando o Novo testamento fala da prosperidade financeira num sentido proveitoso ele lhe atribui a seguinte perspectiva:

Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para que tenha o que repartir com o que tem necessidade”. (Ef 4:28)

Ou seja, a prosperidade financeira deve servir na vida cristã para que possamos socorrer o necessitado e ela vem mediante o trabalho. É trabalhando que Deus nos abençoa com prosperidade.

A única coisa que conseguimos entregando primícias para nossos líderes é enriquecê-los, e com isso perpetuamos algo condenado por Cristo, que é a cobiça.

Porque o amor ao dinheiro é raiz de todos os males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores”. (1Tm 6:10)

Ver também Lucas 12:15.

Espero sinceramente que este curto artigo sirva para nos fazer refletir um pouco sobre o tipo de vida cristã que estamos vivendo e se ela está de fato em concordância com o que a Palavra de Deus nos ensina e adverte. E que o amor de Deus nos leve a buscar conhecimento doutrinário exclusivamente em Sua Palavra e que assim aprendamos que espiritual mesmo é amar...

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Peço perdão pela falta de aprofundamento exegético, pois achei que deixaria o texto muito denso e cansativo. Caso necessário, farei considerações exegéticas adicionais nos comentários.*

Fonte: [ Intervalo Cristão ]
Via: [ Exemplo Bereiano ]


Lixo no lugar do Evangelho

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Por Martyn Lloyd-Jones (1899 - 1981)


Todos nós gostamos de cantar o hino pátrio “Jerusalém”, de Blake:

Traze-me o meu arco de flamejante ouro!
Traze-me as minhas flechas de desejo!
Traze-me a minha lança! Ó nuvens, clareai!
Traze-me o meu potente carro de fogo!
Não cessarei meu combate mental,
Nem dormirá minha espada em minha mão,
Até que tenhamos construído Jerusalém
Na verde e aprazível terra da Inglaterra.

Bela poesia! Palavras maravilhosas! A melodia de Sir Hubert Parry talvez seja até melhor. Mas, que dizer disso? Lixo e absurdo!

Todavia, nós acreditamos que somos capazes de melhorar as condições; pensamos que podemos dar o devido tratamento às dificuldades. Vamos introduzir uma nova Jerusalém por meio de leis do parlamento e de várias outras maneiras. Mas eis o que diz Deus: Saia! Saia! Por quê? Porque esta terra é uma terra de pecado e de infortúnio, porque estamos vivendo na Cidade da Destruição.

O velho John Bunyan viu isso. Vocês já leram “O Peregrino”. Se não leram, permitam que lhes diga que ele tem mais para dizer à presente geração do que os brilhantes artigos de todos os seus jornais dominicais juntos. O Progresso do Peregrino! Como começa! Havia um homem que vivia numa localidade chamada Cidade da Destruição, e lhe chegou um chamado para que saísse, para que fugisse pra salvar sua vida, para fugir daquela cidade. E, segundo a Bíblia, este mundo é a Cidade da Destruição. Os atos e as atividades do homem jamais produzirão uma nova Jerusalém nesta “verde e aprazível terra”.

Não, a verdade simples e clara que nos é dita é que a Mesopotâmia, a Inglaterra, qualquer lugar que vocês queiram, está debaixo da ira de Deus. É isso que a bíblia diz, é isso que a mensagem cristã diz ao mundo atual. Estamos sob a ira de Deus, meus amigos. Por que tivemos estas duas guerras mundiais? Por que as coisas estão como estão? Segundo este ensino, tudo faz parte da punição de Deus sobre o nosso pecado e rebelião contra Ele. Deus está deixando que colhamos o que nós mesmos semeamos. “O que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6.7). Se você começar adorando ou servindo o homem, logo o matará. Se você disser que pode ir em frente mesmo diante do que Deus diz, sua vida será um caos. Isso faz parte da punição. Todos nós estamos na Cidade da Destruição. “Éramos por natureza filhos da ira, como os outros também” (Ef 2.3). “Do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens” (Rm 1.8).

Quer eu e vocês gostemos disso quer não, essa é a mensagem do evangelho. “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”. Este é, num sentido, o início da grande história da redenção, a aliança que Deus fez com Abraão. Mas o primeiro passo é este. “Saia! Você está na Cidade da Destruição. Fuja! Venha!

Por isso eu dou o meu pareceu a vocês, que o juízo de Deus sobre o pecado do homem é a única explicação adequada do estado deste mundo. Vão pedir aos seus filósofos que expliquem isso, peçam-no aos crentes na política; não podem. Bem, eu não estou aqui para dizer que não precisamos de filosofia, de política e de educação; claro está que precisamos. Contudo, o que eu estou dizendo é que, se você firmar nelas a sua fé, como estultamente fazem os que não firmam em Deus a sua fé, o seu mundo irá de mal a pior. O mundo, neste século XX, está falsificando todos os ensinos e os prognósticos dos idealistas, aquela gente confiante do século XIX e depois. Não, não; este mundo está debaixo da ira de Deus, está sob condenação.

Fonte: [ Josemar Bessa ]
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O coração do Salvo e do Ímpio está nas mãos de Deus

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Por João Calvino

Aquilo que Salomão diz a respeito do coração do rei, isto é, que está na mão do Senhor que o dirige para onde quiser, é igualmente verdadeiro acerca dos corações de todos os homens. Até os conceitos de nossas mentes são dirigidos pelo poder sigiloso de Deus para cumprir Seus propósitos. Nada pode comprovar isto mais claramente do que o fato de que Deus tão freqüentemente nos diz que cega as mentes dos homens, aflige-os com delírio, derrama sobre eles o espírito do sono, fere-os com loucura, endurece seus corações. (Ver Rom. 1:26 e 11:8).

Muitos, conforme dissemos, atribuem todas estas declarações à "vontade permissiva de Deus" mas esta solução não me parece sábia, visto que o Espírito Santo expressamente declara que a cegueira e a loucura são infligidas sobre os ímpios pelo reto juízo de Deus.

Até este ponto tenho apenas exposto o que é aberta e claramente ensinado nas Escrituras; portanto considerem que tipo de censura tomam sobre si todos aqueles que estigmatizam os oráculos sagrados com difamação. Se disserem, "Tais coisas estão além do nosso conhecimento, e queremos crédito pela nossa modéstia em deixá-las como estão", eu respondo: "O que pode ser mais arrogante do que falar uma única sílaba contra a autoridade de Deus, e dizer: "Eu penso de modo diferente", ou "É melhor não tocar em tais doutrinas?" Semelhante arrogância não é novidade; pois em todos os tempos houveram homens ímpios, sem Deus, que têm atacado esta verdade como cães furiosos. Tais insolentes descobrirão que as palavras de Davi são verídicas, que Deus "será tido por justo... no seu julgar" (Sal. 51:4).

Tem-se argumentado que, se nada acontece senão segundo a vontade de Deus, então Ele deve ter duas vontades contrárias, pois secretamente decreta o que na Sua lei abertamente proíbe. É fácil desmascarar esta falácia, mas antes de fazer isso, deixem-me lembrar aos meus leitores que se trata de uma cavilação contra o Espírito Santo e não contra mim; pois o Espírito Santo certamente ensinou a Jó a dizer: "O Senhor o tomou", quando salteadores o despojaram dos seus bens. Está escrito também que os filhos de Eli não obedeciam a seu pai, porque o Senhor resolvera matá-los (1 Sam. 2:25).

Assim também, em tempos posteriores, a Igreja diz que Herodes e Pilatos conspiraram juntos para fazerem o que a mão de Deus e o Seu propósito predeterminaram (At. 4:27-28). Realmente, se Cristo não tivesse sido crucificado pelo desígnio de Deus, como poderíamos ter obtido a redenção?

O fato é que Deus não está em desacordo com Si mesmo, nem sofre mudança Sua vontade, nem finge que não deseja as coisas que deseja. Sua vontade é una e indivisa, mas parece-nos, por causa da fraqueza do nosso entendimento, que está em desacordo com ela mesma. Sobre este assunto Agostinho tem uma declaração com a qual todas as pessoas piedosas concordarão: "Alguns homens têm bons desejos que não estão de acordo com a vontade de Deus, e outros têm maus desejos que estão de acordo com a vontade de Deus. Por exemplo, um bom filho pode corretamente desejar que seu pai viva, ao passo que é a vontade de Deus que morra; e um mau filho pode maldosamente desejar que seu pai morra, quando é também a vontade de Deus que o pai morra. E mesmo assim, o filho piedoso agrada a Deus ao desejar aquilo que não é da vontade de Deus; enquanto o filho ímpio desagrada a Deus ao desejar aquilo que é da vontade de Deus." Deus às vezes cumpre Seus propósitos justos mediante os maus propósitos dos ímpios. O mesmo escritor (Agostinho) diz que os anjos apóstatas e todos os ímpios, no que lhes dizia respeito, fizeram aquilo que era contrário à vontade de Deus; mas, quanto à Sua onipotência, era impossível para eles fazerem qualquer coisa contra a Sua vontade; pois, enquanto agem em oposição à vontade de Deus, ela é cumprida por eles. Acrescenta que um Deus bom não permitiria que o mal fosse feito, a não ser que um Deus onipotente pudesse transformá-lo em bem.

Uma resposta semelhante pode ser dada a outra objeção que tem sido feita contra a verdade que agora estamos considerando. A objeção é a seguinte: Se Deus não somente emprega a instrumentalidade dos ímpios, como também governa seus planos e paixões, porventura não seria Ele o autor de todos os seus crimes? E quanto aos homens que estão sujeitos à Sua vontade, não estariam injustamente condenados por cumprirem Seus decretos? Este falso raciocínio confunde a vontade de Deus com Seu mandamento, embora fique evidente por muitos exemplos que há uma diferença muito grande entre eles. Foi a vontade de Deus que o adultério de Davi fosse vingado pela imoralidade de Absalão (com as concubinas do seu pai); mas não se segue que Deus ordenou a Absalão cometer tal ato incestuoso; a não ser que possamos falar assim a respeito de Davi, da mesma maneira que ele fala das maldições de Simei. Quando o rei disse: "Deixai-o, que amaldiçoe, pois o Senhor lhe ordenou" (2 Sam. 16:11), de modo algum recomendava Simei por sua obediência a Deus; mas, reconhecendo que a língua maligna daquele homem era o flagelo de Deus, submeteu-se pacientemente a ser castigado por ela. Devemos apegar-nos firmemente ao princípio de que os ímpios, por cujo intermédio Deus realiza os Seus justos julgamentos e decretos, não devem ser considerados inculpáveis como se tivessem obedecido ao Seu mandamento, mandamento este que atrevida e deliberadamente quebram.

É sábio abraçarmos com mansidão e humildade tudo quanto é ensinado nas Sagradas Escrituras. Aqueles que têm a insolência de difamar suas doutrinas soltam suas línguas contra Deus e não são dignos de mais refutação.

Fonte: [ O Calvinista ]
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Como podemos ser responsabilizados por nossa própria inabilidade?

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Phil Johnson

A Confissão de Westminster declara a doutrina de depravação total nestes termos: "O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso." (Cap. IX, seção 3).

"Em outras palavras, os pecadores não têm nenhuma habilidade para fazer bem espiritual que mereça o favor de Deus ou Seu perdão. Eles são completamente antagônicos à verdadeira retidão."

Cada elemento desta declaração é crucial. Note precisamente que tipo de inabilidade é descrita aqui. Não é uma inabilidade para fazer coisas boas. É uma inabilidade para "qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação". Em outras palavras, os pecadores não têm nenhuma habilidade para fazer bem espiritual que mereça o favor de Deus ou Seu perdão. Eles são completamente antagônicos à verdadeira retidão. Eles estão desesperadamente em escravidão ao pecado. Eles não podem salvar-se ou até mesmo tornar-se adequados à salvação de Deus. Eles não têm nenhum apetite pela verdade espiritual, nenhuma habilidade para entendê-la. Portanto, eles não têm a menor possibilidade de acreditar na verdade ou apropriar-se da salvação por quaisquer meios.

Em João 8:44, Jesus disse aos Fariseus: " Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos". Os desejos deles eram corruptos, e era uma corrupção que emanava do próprio núcleo da sua natureza. Jesus disse que eles eram como o diabo. Ele continuou dizendo: "[O Diabo] jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira".

A implicação é: Vocês estão no mesmo barco. Na verdade, ele estava dizendo àqueles fariseus: É da natureza de vocês serem maus. Não há nenhuma forma de fazer com que você se torne alguém que você não é. "Pode, acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Então, poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal." (Jeremias 13:23)

"Nossa vontade é livre para escolher de acordo com nossos desejos, mas não é livre para determinar esses desejos."

Neste ponto, alguns leitores perguntarão: "Se as coisas são assim - se nós somos pecadores por natureza, totalmente incapazes de ser outra coisa – como pode um Deus justo considerar-nos responsáveis por isso? Não seria justo ordenar a um paraplégico que ele corresse a maratona e depois castigá-lo porque ele é incapaz de fazê-lo, seria?"

Mas a nossa inabilidade não é a inabilidade de um paraplégico; é uma inabilidade da vontade. Nossa inabilidade não procede de uma falta de faculdades físicas, racionais, ou cognitivas. Procede de uma inclinação moral errada – uma vontade que está firmemente posicionada contra a verdade e que não tem nenhuma inclinação para desejar de outra forma.

Todas as nossas faculdades - nossas mentes, emoções, e vontades – funcionam muito bem. Isto é, nós podemos pensar, agir e escolher livremente de acordo com qualquer dos nossos próprios desejos e motivações. Mas este é precisamente o problema: nossos desejos e motivações são exatamente as coisas que o pecado corrompeu. Nossos desejos são defeituosos. Assim a própria vontade está inclinada contra a retidão. Nossa corrupção é, portanto, uma depravação deliberada. É um defeito moral, e não o tipo de inabilidade que impede um paraplégico de correr uma corrida.

A depravação inclina a vontade de um pecador caído para amar o pecado, de forma que a retidão de Deus torna-se moralmente repugnante. O pecador torna-se incapaz de amá-lO, incapaz de escolher obedecer à Sua lei. É um defeito moral e, portanto, o próprio pecador é moralmente culpável.

Mas a vontade humana não é livre? Em um sentido ela é, mas no sentido normalmente empregado pelas pessoas e que faz com que os mais liberais usem a expressão "livre-arbítrio", a vontade não é livre. Ela está escravizada pelo pecado.

"Portanto nossa inabilidade não é nenhuma desculpa para nossa pecaminosidade. É precisamente o oposto. É a própria razão porque estamos condenados."

Nossa vontade é livre para escolher de acordo com nossos desejos, mas não é livre para determinar esses desejos. Nossa vontade é livre no sentido de que nossas escolhas não são forçadas sobre nós ou compelidas através de pressão externa. Mas nossa vontade não é "livre" no sentido de ser soberana sobre a nossa natureza moral. Nós não podemos, por um ato da vontade, mudar nosso caráter para melhor. Esse é o ponto enfatizado em Jeremias 13:23: O pecador tem exatamente a mesma habilidade para transformar seu próprio coração e fazer com que este faça o bem que o leopardo tem de remover suas manchas.

Em outras palavras, a depravação corrompe o nosso coração e perverte todos os nossos apetites. Ela inclina a nossa natureza de tal forma que passamos a amar o pecado. Desejos maus, então, governam as escolhas que fazemos. E já que nós fazemos essas escolhas livremente e com grande satisfação, nós somos culpados por elas.

Portanto nossa inabilidade não é nenhuma desculpa para nossa pecaminosidade. É precisamente o oposto. É a própria razão porque estamos condenados. O pecado flui do próprio centro de nossas almas. O coração daquilo que somos é mau. Nós somos "por natureza, filhos da ira" (Efésios 2:3). É por isso que nós fazemos coisas más. Disse Jesus: "Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem." (Marcos 7:21-23)

Em outras palavras, nós não somos pecadores porque pecamos; nós pecamos porque somos pecadores. Nós nascemos pecadores, e todos os nossos atos de pecado procedem desse fato.

Fonte: [ Bom Caminho ]
Via: [ Ministério Batista Beréia ]

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Estratégias humanas??? - O Evangelho funciona!

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Por Martyn Lloyd-Jones

(O Evangelho) funciona — é «o poder de Deus para a salvação». Não causa surpresa que Paulo use a palavra «poder», escrevendo para Roma. Essa era a palavra importante para os romanos. Tendiam por julgar tudo em termos de poder. . . o poder era para Roma o que a sabedoria era para Atenas.

Os romanos não dariam atenção a coisa alguma que não funcionasse e que não tivesse poder. . . Paulo sabia disso, e, porque o sabia, lançou seu desafio. Queriam provar o Evangelho por seus resultados? Muito bem, ele estava pronto a satisfazê-los.

Não só isso, estava pronto a desafiá-los. Que é que todo o saber, toda a cultura e todas as religiões de Roma tinham produzido realmente? Se estavam querendo resultados, bem, que os produzissem. . . Qual o objetivo e qual o valor de todas as filosofias, se não podem solucionar os problemas da vida?

Ele mesmo, Paulo, outrora se gabara da lei judaica e do seu bom êxito em cumpri-la. Mas ele chegou a perceber que tudo aquilo de que se orgulhara não passava de coisas externas, quando chegou a vislumbrar o real e interior significado da lei, descobriu que ele era um fracasso completo.

Desenvolve ele esse tema no capítulo 7 de (Romanos). Todos os esforços humanos para resolver os problemas da vida falham, seja que se restrinjam a seguir linhas puramente intelectuais, ou que consistam em esforços e lutas morais, ou em penoso jornadear pelas veredas do misticismo. Mas o Evangelho que Paulo agora pregava, funciona! Tinha funcionado em sua própria vida. Tinha mudado e transformado tudo! Tinha trazido paz e repouso à sua alma e tinha tornado vitoriosa a sua vida.

E o mesmo resultado tinha sido obtido pelo Evangelho em inumeráveis milhares de pessoas. Como aconteceu isso? . . . É somente o Evangelho que enfrenta e desmascara o problema fundamental do homem e suas necessidades, e o trata como deve ser tratado. . . Somente o Evangelho faz o diagnóstico exato; somente o Evangelho tem o remédio.

The Plight of Man and the Power of God, p. 84,5.

Fonte: [ Josemar Bessa
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Regeneração

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Por Asahel Nettleton

“Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (João 1.12-13)

Estes versículos ensinam uma doutrina simples, mas importante: aqueles que recebem a Cristo, aos quais foi-lhes dado o poder para tornarem- se filhos de Deus e crêem no nome de Cristo, foram nascidos de Deus. Em outras palavras, uma pessoa se torna verdadeiro crente por meio de uma especial aplicação de poder por parte do Todo poderoso a fim de mudar seu coração. A expressão, “nasceram... de Deus”, freqüentemente utilizada pelos escritores do Novo Testamento, expressa linguagem figurada. Sua adequação, quando aplicada às coisas espirituais, resulta da analogia que existe entre o início de nossa existência física e de nossa vida espiritual. Os crentes são filhos de Deus; isto precisa ser entendido em um sentido peculiar. Todos os homens são criados por Deus e dEle recebem suas capacidades naturais; neste sentido todos são filhos de Deus. Mas, quando a Bíblia aplica a expressão “filhos de Deus” aos crentes, para distingui-los das outras pessoas, ela o faz para ressaltar um relacionamento que Deus não tem com os demais seres humanos. E somente Ele é o autor da regeneração, pela qual os crentes se tornam seus filhos e é dito que eles são nascidos de Deus. As Escrituras afirmam que os crentes foram gerados por Deus, em comparação ao relacionamento que existe entre os pais terrenos e seus filhos.

O objetivo destes versículos é mostrar que nosso relacionamento com Deus, como seus filhos espirituais, foi produzido exclusivamente por meio de seu soberano poder. A princípio, estes versículos foram adaptados para oporem-se aos preconceitos carnais dos judeus. A opinião comum destas pessoas era que todos os descendentes de Abraão eram herdeiros das promessas divinas e tinham o direito à vida eterna. Este conceito foi consistentemente combatido por Cristo e seus apóstolos. Deixando de lado a tentativa de determinar o significado exato da afirmativa.os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus., observamos que havia três maneiras de pessoas serem consideradas filhos de Abraão: por descendência natural, por meio de um relacionamento ilícito e por adoção. Independentemente da maneira, os judeus imaginavam que se tornava um filho de Deus aquela pessoa que se tornava filho de Abraão. O bem-conceituado Dr. Lightfoot propôs que o objetivo do apóstolo João era aniquilar as falsas esperanças dos judeus, afirmando que, se alguém havia se tornado filho de Abraão através de alguma destas maneiras, isto não o transformava em filho de Deus. Outro tipo de nascimento é necessário; uma nova filiação, vinda do alto. Era preciso que Deus os fizesse nascer de novo. Qualquer que seja o significado específico destes versículos, a impressão geral e o objetivo específico do escritor sagrado é que todos os outros métodos de alguém tornar-se filho de Deus são falsos e imaginários, exceto o ser nascido de novo. Estas palavras foram escritas para combater as idéias predominantes naqueles dias, e hoje podemos utilizá-las de maneira semelhante.

Dentre todos os assuntos, aquele que se refere à nossa passagem da morte para a vida com certeza é o mais importante e interessante. Ter idéias claras e definidas sobre este assunto é crucial; errar no que concerne a ele equivale a um perigo terrível. Em certo sentido, todas as coisas pertencem a Deus. Ele é o Criador e Governador de tudo. Todos os poderes e capacidades que um homem possui procedem de Deus. Todos os meios da graça e ordenanças espirituais foram instituídas por Ele. Mas, quando as Escrituras falam sobre nascer de novo, elas querem dizer muito mais do que um homem ser influenciado por esses meios da graça e ordenanças espirituais, ao utilizar seus poderes e capacidades naturais. A fim de evitar uma compreensão errada sobre o assunto, afirmei no início que a regeneração é uma obra especial efetuada pelo poder do Todo poderoso. Os que erram neste assunto jamais tentaram negar abertamente que os crentes são nascidos de Deus, pois isto corresponderia a renunciar toda aparência de confiança nas Escrituras. Eles escolheram um método mais seguro para divulgarem suas opiniões: ao mesmo tempo que preservam as palavras dos autores sagrados, atacam e desprezam o significado das mesmas, de modo que a regeneração se torna uma simples aplicação de um rito externo ou uma persuasão da mente afetada de maneira comum, que resulta em uma reforma da moralidade.

Esclarecer o erro ajuda-nos a compreender a verdade. De maneira abreviada, consideraremos alguns conceitos errados sobre a regeneração e, em seguida, mostraremos o que significa ser nascido de Deus.

Não preciso gastar muito tempo esforçando-me para demonstrar que o batismo não é regeneração. Nada é tão evidente quanto o fato de que um rito exterior não pode mudar o coração. O batismo é apenas um sinal ou símbolo das salvadoras influências do Espírito Santo, e não a obra de regeneração. Tanto a Escritura quanto a experiência mostram que nem todas as pessoas batizadas são regeneradas, pois algumas delas em suas vidas e conversas não diferem do mundo que jaz no Maligno.. Quanto a isto, precisamos apenas citar as palavras de um eminente teólogo inglês: O ensino da regeneração através do batismo é a completa rejeição e desprezo da graça de nosso Senhor Jesus Cristo.; e acrescentou: ”A vaidade desta presunção tola destrói a graça do evangelho; é uma presunção forjada para apoiar os homens em seus pecados e ocultar lhes a necessidade de nascerem de novo e de se converterem a Deus. Entretanto, irmãos amados, não foi assim que aprendemos de Cristo”.

O absurdo de alterar assim o verdadeiro ensino sobre a regeneração e outras doutrinas semelhantes é tão palpável e grotesco, que pode ser detectado e percebido onde existe qualquer grau de conhecimento acerca da natureza da vida espiritual. Encontramos menor perigo em tais noções extravagantes do que naquelas que são mais sutis e sofisticadas.

Pelágio, no século IV, inventou e advogou um esquema de regeneração que, com poucas modificações, às vezes na fraseologia ou no acréscimo e diminuição de algumas partes, tem sido o método de quase todos os sectários, os quais se apartaram dos ensinos ortodoxos do evangelho. Em épocas diferentes, autores têm surgido em diversos países, levando adiante este ilusório ensino sobre o novo nascimento em termos elaborados por eles mesmos. E muitos que lêem seus escritos de maneira superficial têm sido enganados, acreditando neste falso conceito. O fato é que quase todo o sistema de ensinos fundamentado em noções obscuras e inadequadas sobre este importante assunto da regeneração é apenas um reflexo da heresia de Pelágio, universalmente condenada pela igreja dos primeiros séculos, que agora se apresenta em nova roupagem e, para assegurar sua aceitação, segue os padrões do mundo moderno.

Os principais aspectos do ensino de Pelágio e Armínio (ambos, em essência, ensinaram as mesmas coisas) são estes:

1. Deus não somente proclama e oferece de maneira semelhante a graça e a salvação a todos os homens, mas também o Espírito Santo é derramado de modo suficiente e igual sobre todos eles, para garantir-lhes a salvação, contanto que se aproveitem dos benefícios que lhes são concedidos;
2. Os preceitos e promessas do evangelho, além de serem bons e desejáveis em si mesmos, são tão adaptados à mente do homem natural e aos interesses da humanidade, que estes se inclinarão a recebê-los, a menos que sejam vencidos pelo preconceito e por uma vida habitual no pecado.
3. Pensar sobre as ameaças e promessas do evangelho é suficiente para remover os preconceitos e levar a pessoa a deixar a vida no pecado.
4. Aqueles que meditam com seriedade e consertam suas vidas têm a promessa do Espírito Santo e recebem direito para desfrutarem os benefícios da nova aliança.

Esta irreal declaração de princípios fundamentais, capaz de convencer mentes que não ponderam sobre estes assuntos, anula a própria essência da verdade do evangelho. Este sistema de doutrina preceitua que todos os homens são regenerados de igual modo, possuem a mesma medida do Espírito, e a diferença entre um e outro encontra- se totalmente em si mesmos, dependendo da maneira como eles se beneficiam das bênçãos outorgadas. Neste caso, regeneração significa uma reforma na vida, induzida por meio de persuasão moral ou iniciada como resultado de ser iluminado o entendimento e as emoções serem comovidas exclusivamente por meio da verdade divina. Se indagarmos de que modo neste sistema de doutrina a salvação resulta da graça divina, a resposta é que todos os meios de alguém se beneficiar das bênçãos recebidas são concedidos por Deus e, por conseguinte, constituem a graça.

Todo este sistema de doutrina resume-se no seguinte: Deus outorga as capacidades e a graça a todos os homens de maneira semelhante; e, tendo sido estas outorgadas, eles trabalham por sua própria salvação, sendo persuadidos a fazer isso por meio das promessas e ameaças do evangelho. A terrível ilusão causada por esse tipo de doutrina resulta de sua plausibilidade, tem aparência de verdade, mas está repleta de erros graves e perigosos.

Não tenho dúvidas de que o Espírito Santo se utiliza da Palavra e de muitos outros instrumentos para trazer os pecadores a Cristo. Mas afirmar que os homens são naturalmente inclinados a aprovarem e obedecerem aos preceitos do evangelho, exceto quando algum tipo específico de pecado os impede, isso claramente contradiz o evangelho. Pelo contrário, como princípio fundamental o evangelho revela que todos os homens, por natureza, são filhos da ira e cegos no que se refere à luz da verdade divina; estão em inimizade com Deus e mortos em ofensas e pecados. A idéia de que o Espírito Santo é conferido a todos, de maneira suficiente para salvá-los, anula o conceito da graça especial e torna nascidos de Deus tanto uns quanto outros! O texto bíblico citado no início afirma que todos quantos receberam a Cristo e creram em seu nome foram nascidos de Deus. Se isto é verdade, outros que não O receberam não foram nascidos de Deus; portanto, não podemos dizer que as influências do Espírito são iguais para todos.

É uma grande pedra de tropeço, para muitos, o fato de que Deus outorga do seu Espírito mais para uma pessoa do que para outras. A fim de remover este preconceito, Pelágio e muitos depois dele têm sustentado o ensino de que todos os homens recebem os mesmos dons, para labutarem em favor de sua própria salvação. É lógico que tal ensino destrói o novo nascimento e o torna comum a todos os homens. De acordo com este ensino, Judas Iscariotes recebeu tanto da graça divina quanto o apóstolo Paulo; Acabe se vendeu à impiedade, mas o mesmo poderia ter feito Davi, o homem segundo o coração de Deus. Toda a diferença entre os homens deve-se a maneira diferente como eles se aproveitam de seus privilégios.

Sei que esse tipo de doutrina agrada a natureza caída; e a aceitação que ela tem desfrutado desde que foi pregada pela primeira vez comprova quão agradável é ao raciocínio do homem natural. Porém, nem as Escrituras nem a experiência nos oferecem qualquer razão para crermos nessa doutrina. Não duvido que o Espírito Santo luta com todos os homens que não estão condenados.

Reconheço que as ameaças e promessas do evangelho seriam suficientes para persuadir- nos a um viver santo, se nosso entendimento não estivesse obscurecido e nossas afeições não fossem depravadas. Entretanto, nego que a graça comum a todos nos torna filhos de Deus, ou que somos persuadidos a nos tornarmos cristãos sem haver uma especial realização divina; ou que todos os homens recebem a mesma medida do Espírito Santo.

Apesar de todos os meios preparatórios, todas as ameaças e promessas do evangelho, todas as atividades da graça comum e todos os esforços dos pecadores não-regenerados, eles precisam nascer de novo para que se tornem filhos de Deus. É necessário que ocorra uma nova criação, uma obra realizada pelo Todo Poderoso numa atividade soberana, especial e sobrenatural, à semelhança da criação do mundo ou do ressuscitar um morto, pois sem esta grandiosa realização ninguém pode ver o reino de Deus. A persuasão não é capaz de fazer novas criaturas. Se o Espírito Santo opera nas mentes dos homens somente por meio de apresentar-lhes os argumentos e motivos mais diversos e mais adequados para a sua conversão, afinal de contas a vontade do homem determinará se ele será regenerado ou não. Nesse tipo de ensino, a glória da regeneração pertenceria a nós mesmos. Também não haveria certeza se Cristo teria qualquer descendência espiritual, visto que dependeria da incerta resolução de cada pessoa diante da qual os motivos foram colocados. Isto contradiz as Escrituras. Deus não limita as realizações de seu Espírito à apresentação de motivos persuasivos diante dos homens, pois apresentar-se-á voluntariamente o teu povo, no dia do teu poder. (Sl 110.3).

A persuasão moral que oferece uma vida melhor não outorga qualquer poder supranatural à alma, a fim de que esta seja capacitada a viver. A persuasão não produz novo interesse e discernimento espiritual. Se a regeneração acontece desta maneira, então o homem regenera a si mesmo, nasce de novo por si mesmo, tornando a si mesmo diferente dos outros homens. Se assim fosse, o Espírito Santo não teria mais a realizar do que fizeram Paulo e Apolo.

Não é por esse tipo de coisa que oramos: não oramos para que os motivos corretos sejam apresentados aos homens, para que regenerem a si mesmos. Oramos para que Deus mude os seus corações e os torne novas criaturas. As igrejas primitivas que sentiam intensas pressões externas invocavam esta súplica sobre os hereges, que negavam o exercício de um poder sobrenatural na regeneração.

Existe apenas uma maneira de uma pessoa morta em seus delitos e pecados ressurgir para a vida: por meio do poder de Deus que a vivifica e faz nascer de novo. Observe a linguagem que os escritores sagrados utilizaram para transmitirem este conceito: nascer de Deus, gerado de Deus, vivificar, receber vida e nascer de novo. Se disserem que esta linguagem é figurada, eu concordo. Mas, se encontramos qualquer significado nestas figuras, então a obra de regeneração fala do começo de uma nova existência espiritual. De outro modo, a linguagem das Escrituras, em todos os seus livros, é a mais obscura, imaginária e sem significado.

Você pode supor todas as preparações, conhecimento, motivos, moralidade, esforços que lhe convier; mas, apesar de tudo isso, repetimos, é necessário que aconteça o novo nascimento (os mortos precisam ser vivificados), pois os crentes são nascidos de Deus. O mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre os mortos, o supremo poder do Deus vivo tem de realizar esta obra. Essa foi a súplica do apóstolo: que conheçamos .qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder, o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos. (Ef 1.19-20).

Na verdade, meus amigos, onde mais podemos encontrar a fonte de uma mudança que nos torna verdadeiros cristãos e nos traz da morte para a vida, senão na onipotência do Espírito Santo? É nosso entendimento que realiza esta mudança? Nosso entendimento está em trevas. “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus... e não pode entendê-las” (1 Co 2.14). É a nossa vontade? Somos inclinados para o mal, assim como dois e dois são quatro. Nossas vontades são perversas e rebeldes. É o nosso poder? Cristo morreu pelos ímpios, que estão sem poder. Não somos capazes em nós mesmos de ter bons pensamentos. São os nossos méritos que realizam esta mudança? Não merecemos nada, exceto a condenação. São os ministros de Deus que nos convencem? Alguns podem semear a Palavra, e outros, regá-la, mas a germinação é realizada por Deus.

Todos os esforços têm sido realizados pela ingenuidade humana, mediante doutrinas claramente errôneas ou aparentemente plausíveis, a fim de retirar do Espírito Santo a glória da obra de regeneração e levar o homem a reivindicar esta realização para si mesmo ou, pelo menos, a compartilhar da honra. No entanto, a origem da regeneração se encontra somente na livre e soberana graça do todo poderoso poder de Deus. A regeneração é uma obra totalmente divina; a glória, portanto, tem de pertencer e pertencerá para sempre a Deus.

Uma doutrina sustentada pelos grandes mestres da Reforma e pelas igrejas evangélicas desde então é que a regeneração é uma obra física. Com isto eles queriam dizer que havia realmente uma nova criação, tão absoluta quanto a criação do mundo; um novo interesse, princípio e discernimento espiritual é implantado por meio de uma soberana obra criadora da parte de Deus e não simplesmente um novo direcionamento de velhas capacidades.

Uma vez que esta obra é reconhecida, todas as demais doutrinas que constituem a verdade evangélica fluem dela: as doutrinas da graça, a soberania de Deus, a eleição, a redenção somente por meio de Cristo, a depravação humana e outras a estas relacionadas. Existe um grande, harmonioso e perfeito conjunto de doutrinas, e Deus é a essência e a glória de todas elas.

Meus amigos, eu estou plenamente certo de que existem dificuldades nas doutrinas que acabamos de apresentar. Mas a Bíblia fundamenta todas elas; isto é o bastante. Diante dela nosso entendimento carnal tem de se prostrar e nossos corações, submeterem se. Se você mudar estas verdades, utilizando idéias misteriosas, conceitos inúteis ou inconsistências, será assaltado não pelos homens, e sim pelo próprio Deus. Leia e atente aos ensinos da Palavra de Deus. Ela afirma permanentemente, em caracteres reluzentes: “Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13).

Existe apenas um tipo de nascimento que pode nos preparar para o céu: “Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3). Podemos atender à nossa imaginação e satisfazer nossa justiça própria, ao adotarmos os vagos conceitos pelagianos a respeito deste assunto; podemos protestar contra a absoluta dependência da graça de Deus, conforme demonstramos; mas perceberemos que um novo coração e um espírito de retidão são absolutamente necessários, pois sem eles pereceremos eternamente.
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Asahel Nettleton (21 de abril, 1783 – 16 de maio 1844) foi um teólogo e pastor de Connecticut muito influente, durante o Segundo Grande Despertamento. O número de pessoas que se converteu ao cristianismo como resultado de seu ministério é estimado em 30.000. Ele participou do Yale College de 1805 até sua graduação em 1809 e foi ordenado ao ministério em 1811. Ele é, sobretudo, conhecido por sua oposição aos ensinamentos de Charles Finney.

Logo após sua conversão, Nettleton decidiu que serviria ao Senhor nos campos missionários, mas Deus tinha outros planos. Nettleton entrou na Universidade de Yale em 1805 e formou-se em 1809. Tinha um intenso amor pelos perdidos.

Após estudar sob a orientação do Rev. Bezaleel Pinneo, de Connecticut, Nettleton começou seu ministério itinerante. Nesta época, muitos excessos e divisões estavam surgindo como resultado do Grande Avivamento. Após estudar as causas e os efeitos das numerosas desordens, ele adotou uma postura saudável para si mesmo e seu ministério. Desde o início de seu trabalho, Deus abençoou sua pregação com glorioso poder, e ocorreram vários avivamentos. Em 1817, ele foi ordenado evangelista congregacional. Foi um dos mais sábios e cautelosos evangelistas itinerantes que já abençoaram os Estados Unidos. Sua teologia estava em completa harmonia com a de homens piedosos que o precederam nas igrejas congregacionais e presbiterianas de seu país.

Francis Wayland, pastor da Primeira Igreja Batista de Boston e presidente da Universidade Brown, em cujo tempo um grande avivamento religioso aconteceu sob a influência da pregação de Nettleton, descreveu-o assim: Ele é um dos mais eficientes pregadores que já conheci. Ele conseguia fazer que a lógica assumisse uma forma atraente e produzisse efeitos decisivos. Quando Nettleton argumentava sobre grandes doutrinas, tais como as da carta aos Romanos: eleição, completa depravação do homem, a necessidade de regeneração e de expiação dos pecados, seu estilo de pregar, com frequência, era socrático.

A teologia de Nettleton foi distintamente Reformada. Ele cria que a salvação era unicamente uma obra de Deus e, por conseguinte, rejeitava a prática de Finney de fazer apelos — chamada ao altar — durante suas pregações. Ele cria que a introdução da chamada ao altar era uma negação das doutrinas do pecado original e da depravação total do homem.

Fonte: [ Projeto Os Puritanos ]

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Calvino e Serveto

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Por Rev. Augustus Nicodemus Lopes

Gerações sempre estão passando a limpo pontos obscuros da história de seus antepassados. Assistimos, no momento, a tentativa de vários grupos alemães de trazer a lume aspectos do envolvimento do povo alemão no Holocausto que serviriam para amenizar a sombra que paira sobre a nação pelo assassínio de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Recentemente, o Dr. Frans Leonard Schalkwijk em sua obra Igreja e Estado no Brasil Holandês lança luz sobre a figura do “traidor” Calabar, demonstrando que a “traição” foi, na verdade, sua conversão ao Evangelho pregado pelos holandeses reformados. Quem sabe o presente artigo possa ajudar a passar a limpo alguns aspectos do tristemente famoso episódio envolvendo João Calvino e a execução na fogueira do médico espanhol Miguel Serveto, condenado por heresia contra a Trindade, em 1553, em Genebra.

Preciso dizer desde o início que minha intenção não é justificar a participação de Calvino no incidente. Não posso concordar com a pena de morte como castigo para a heresia, muito menos se o método de execução é queimar vivo o faltoso. Até mesmo os maiores heróis do passado tomaram decisões e fizeram declarações que nos causam, séculos depois, estranheza e discordância. Calvino não é nenhuma exceção. Meu alvo neste artigo não é defendê-lo como se ele fosse sem defeitos. É claro que ele os tinha. É claro que ele errou. Mas penso que, particularmente no caso envolvendo a execução de Serveto por heresia em Genebra, durante o tempo em que Calvino ali ministrava, nem sempre vozes se têm levantado para apresentar outra versão dos fatos, versão esta enraizada em documentos confiáveis. Episódios do passado devem ser entendidos à luz dos conceitos e valores da época em que ocorreram. Meu alvo é expor alguns deles que estavam vigentes na época de Calvino, bem como trazer dados freqüentemente ignorados sobre o episódio. Não podemos justificar Calvino por pedir a pena de morte para Serveto, mas podemos entender os motivos que o levaram a isto.

Testemunhas que viveram em Genebra, logo após a cidade haver abraçado a Reforma protestante, a viram como “o espelho e modelo de verdadeira devoção, um abrigo para os refugiados perseguidos por sua fé, um lugar seguro para treinar e enviar ao estrangeiro soldados do Evangelho e ministros da Palavra”. Logo que Genebra abraçou a Reforma oficialmente e cortou suas lealdades para com o bispo e Duque de Savóia, a cidade foi inundada por refugiados de toda a Europa. Da noite para o dia Genebra se tornou, depois de Wittenberg, Zurique, e Estrasburgo, um monumento da fé protestante.

Apesar destas observações feitas por pessoas que viveram em Genebra na época destes acontecimentos, as impressões que recebemos de nossos professores de escola secundária provavelmente têm pouco, ou nada, em comum com o depoimento destas testemunhas oculares. Segundo M. Horton, “Imagens abundam de um tirano vestido numa toga preta, organizando o equivalente no século XVI de uma polícia secreta moderna para assegurar que ninguém, a qualquer hora ou qualquer lugar, estivesse se divertindo”. É de admirar que, apesar dos testemunhos em contrário, prevaleceu na opinião pública a idéia de que Genebra era uma teocracia e Calvino era seu Papa!

Em 25 de maio de 1536 os cidadãos de Genebra votaram por aderir à Reforma protestante. Mas isso é só o começo. Sem liderança qualificada, Genebra estava à beira do colapso civil e religioso. O que a república nova precisava era de um jovem visionário.

Calvino chegou em Genebra fugindo das autoridades de Paris. Ele havia inicialmente se encaminhado para a cidade reformada de Estrasburgo, onde Martin Bucer estava pregando. Porém, o Rei francês e o Imperador estavam envolvidos em uma guerra que bloqueou a estrada para a cidade. Frustrado, mas destemido, Calvino tomou um desvio para Genebra durante a noite. De lá não passaria. Ficou, a pedido insistente de Farel, líder protestante da cidade, e depois de algum tempo foi designado o pastor da Igreja de São Pedro, a catedral de Genebra. Tensões entre Calvino, Farel e o Conselho municipal com respeito à celebração da Ceia do Senhor, as atribuições da Igreja e do Estado e o exercício da disciplina, acabaram por levar o Conselho a expulsar Calvino de lá. E ele seguiu, exilado, para Estrasburgo.

Ali (1538-41), Calvino se sentia como se estivesse no céu. Martin Bucer se tornou o seu mentor dele Calvino assumiu o pastorado da Igreja francesa reformada da cidade. Durante este tempo, Calvino publicou alguns dos seus trabalhos mais notáveis; ali casou com Idelette Bure, a viúva de um amigo anabatista. Calvino estava muito feliz lá, mas uma vez mais Genebra estava chamando.

O Conselho municipal escreveu a Calvino pedindo ajuda contra o ensino do Cardeal Sadoleto, que procurava retomar Genebra para a Igreja Católica. Pediu desculpas, e com mais um apelo de Farel, convenceram Calvino a voltar. Dr. McGrath, historiador da Universidade de Oxford, demonstra como mito de “o grande ditador de Geneva” é enraizado em conceitos populares difundidos especialmente pelas obras de Bolsec e Huxley, que fizeram afirmações sem ter qualquer fato histórico que os apoiasse, mas que não obstante acabaram por moldar a visão de Calvino que hoje prevalece em muitos meios evangélicos. Calvino não tinha qualquer acesso à máquina decisória do Conselho. Ele mesmo não podia votar e nem concorrer a qualquer cargo político eletivo. E mesmo quanto aos negócios da Igreja, Calvino quase não tinha qualquer poder decisório.

A 25 de outubro de 1553 o Conselho municipal emitiu o decreto que condenava Miguel Serveto à ser queimado na estaca por heresia. De fato, foi Calvino quem o denunciou e quem pediu a pena de morte para ele. Vejamos agora o contexto em que isto aconteceu.

1 - A pena de morte por heresia era prática geral da Idade Média.
2 - Serveto chegou a Genebra fugido de Viena e da França, onde havia sido condenado à morte pela Igreja Católica, sob a acusação de heresia contra a Trindade.
3 - Serveto veio à Genebra apesar dos avisos de Calvino de que isto poderia lhe custar a vida.
4 - Chegando em Genebra, se fez conhecido a Calvino em público. Foi preso e, embora Calvino fosse um teólogo e advogado treinado (havia mesmo sido empregado pelo Conselho municipal para traçar a legislação relativa à previdência social e ao planejamento dos serviços de saúde pública), mesmo assim, não foi o promotor do processo eclesiástico contra Serveto. Lembremos que ele não tinha nem os mesmos direitos de um cidadão comum!
5 - Calvino aceitava a pena de morte, não somente para os que matavam o corpo de seus semelhantes, mas também para os que lhes matavam a alma através do veneno mortal do erro religioso.
6 - Por outro lado, não foram as convicções teológicas de Calvino que o levaram a isto. Não se pode culpar as suas convicções, particularmente sua firme crença na soberania de Deus, pela execução de Serveto.
7 - Calvino havia se correspondido com Serveto e há alguma evidência nestas cartas de que ele tinha tentado até mesmo se encontrar clandestinamente com o anti-trinitário para tentar convencê-lo do seu erro.
8 - Há outro fato a ponderar. Quando foi dada a Serveto a escolha da cidade onde seria julgado, ele escolheu Genebra. A outra opção era Viena, de onde viera fugido. Por alguma razão, ele deve ter pensado que suas chances de sobrevivência eram melhores em Genebra. Porém, o Conselho municipal da cidade, conduzida pela facção dos Libertinos, totalmente contrários a Calvino, estava determinada a mostrar que Genebra era uma cidade reformada e comprometida com os credos. E assim, Serveto foi condenada a ser queimado vivo.
9 - Calvino suplicou ao Conselho que executasse Serveto de uma maneira mais humanitária do que o ritual tradicional de queima de hereges. Mas, claro, o Conselho municipal recusou o argumento de Calvino. Farel visitou Calvino durante a execução. Calvino estava tão transtornado, como foi mais tarde reportado, que Farel partiu sem dizer até mesmo adeus.
10 - A execução de Serveto foi aprovada por todas as demais cidades-estados reformadas, e por todos os reformadores. Lutero e Zwinglio já havia morrido, mas certamente haveriam concordado. Os demais, Bullinger, Beza, Bucer, etc.. todos deram apoio irrestrito à Calvino.

Estes são alguns fatos que devemos lembrar, antes de chamarmos Calvino de “assassino”. Durante este mesmo período, a propósito, trinta e nove hereges foram queimados em Paris, vítimas da Inquisição católica, que estava sendo aplicada com rigor na Espanha e Itália, e outras partes de Europa. Apesar de que muitos que não eram ortodoxos buscaram (e encontraram) refúgio em Genebra, fugindo das autoridades católicas, Serveto foi o único herege a ser queimado lá durante a carreira distinta de Calvino.

Até mesmo os Judeus foram convidados pelas cidades-estados reformadas para se abrigarem nelas, fugindo da Inquisição. O puritano Oliver Cromwell, líder do Parlamento inglês por uma época, mais tarde tornou a Inglaterra um abrigo seguro para os dissidentes religiosos, e especialmente para os judeus. O mesmo ocorreu nos Países Baixos (atual Holanda). E mesmo hoje, Genebra e Estrasburgo, outrora reformadas, figuram no topo da lista como cidades que se destacam em termos de direitos humanos e relações internacionais.

O que muitos ignoram é que Calvino era um pastor atencioso, que visitou pacientes terminais de doenças contagiosas no hospital que ele mesmo havia estabelecido, embora fosse advertido dos perigos de contato. Foi ele quem instou o Conselho a afiançar empréstimos a baixos juros para os pobres. Foi ele quem defendeu a educação universal, livre para todos os habitantes o cidade, como Lutero e os outros reformadores tinha feito. Sua preocupação diária em 1541 era como dar à Genebra uma Universidade.

Eis aqui o famoso “tirano de Genebra”! Penning escreve que, pelo fim da vida de Calvino, ao ser visto nas ruas da cidade, os moradores diziam, “Lá vai nosso Mestre Calvino”. Em 10 de março de 1564 o Conselho decretou um dia de oração para a saúde de Calvino e o reformador recuperou-se durante um tempo. Na Páscoa deste ano Calvino foi levado à igreja carregado em sua cadeira para participar da Ceia do Senhor, devido ao seu extremo estado de fraqueza,. Quando a enorme congregação o viu chegar assim, começou a se lamentar e a chorar. No sábado, 27 de maio, Calvino morria, aos cinqüenta-cinco anos de idade. Quando à noite as notícias da sua morte se espalharam pela cidade, “Genebra lamentou-se como uma nação lamenta quando perde seu benfeitor”, escreve Penning.

A execução de Serveto permanece como uma mancha na história da carreira distinta de Calvino em Genebra. Usá-la, porém, para denegrir sua imagem, para atacar a sua teologia, e para envergonhar os calvinistas, é expediente preconceituoso de quem não deseja ver todos os fatos.

Para Quem Pensa Estar em Pé (III)

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Por Augustus Nicodemus Lopes

Eu não poderia deixar de incluir nessa série sobre santificação um post que trabalhasse a relação entre a santidade bíblica e a neo-ortodoxia. Acredito que uma das maiores vulnerabilidades da neo-ortodoxia é exatamente na área de santificação. Com isso não quero generalizar, dizendo que todo neo-ortodoxo inevitavelmente tem problemas sérios para viver uma vida santa. Apenas estou dizendo que os princípios operantes da neo-ortodoxia tendem a relegar a santificação a um papel secundário na vida cristã.

Começo recordando o que já disse aqui no blog (faz tempo!) sobre a neo-ortodoxia (veja os links para os posts ao final). Ela foi uma tentativa de síntese entre a ortodoxia da Igreja e o liberalismo teológico no século passado, síntese em que não somente o liberalismo perdeu sua força, como também a própria ortodoxia, que já não seria a mesma. Contudo, a neo-ortodoxia continuou a se apresentar usando os termos e o vocabulário da ortodoxia histórica, embora com conteúdo diferente e que pouca coisa tem em comum com a ortodoxia histórica da Igreja. Aos neo-ortodoxos brasileiros eu diria o seguinte quanto à necessidade de santificação.

1. A santidade é visível aos olhos humanos – Ela não acontece nas regiões celestiais apenas, no âmbito das relações invisíveis entre os crentes e Deus. Se por um lado já fomos santificados e glorificados em Cristo nas regiões celestiais – coisa que não podemos sentir nem ver – somos exortados a nos santificar diariamente pela mortificação da natureza pecaminosa e pelo revestimento das virtudes cristãs (cf. Colossenses 3.1-6). A neo-ortodoxia tem a tendência de colocar como transcendentes as manifestações práticas e visíveis da operação da graça de Deus no ser humano, interpretando conversão e santificação em termos psicológicos, apenas. Talvez seja por esse motivo que alguns neo-ortodoxos – note que não estou generalizando – consideram como sem importância fazer sexo antes do casamento, ir aos bailes e baladas, separar-se e casar de novo mais de uma vez, e usar palavrões e linguagem chula. Eles acabam esvaziando de sentido as declarações bíblicas sobre a necessidade diária e prática de uma vida separada do pecado e apegada aos valores cristãos.

2. A santidade é sinal da eleição – Muitos neo-ortodoxos negam isso, afirmando que os puritanos modificaram a doutrina da segurança da fé ensinada por Calvino. Os puritanos, com seu legalismo, teriam conectado a certeza de salvação à santidade e não á fé salvadora, como Calvino supostamente acreditava. Essa tese falsa já foi convincentemente refutada por muitos autores (recomendo o artigo de Paulo Anglada na revista Fides Reformata). Não precisamos dos puritanos para ver que a Bíblia ensina claramente que fomos eleitos para a santificação, e que sem santificação, ninguém verá ao Senhor (Hb 12.14). A santidade de vida – não estou falando de perfeição – é parte integrante da fé salvadora (Romanos 6). Santidade e fé salvadora são dois lados de uma mesma moeda. Tiago que o diga: “Fé sem obras é morta”. E no contexto, ele não estava falando de dar esmolas, mas de obedecer a Deus mesmo ao custo do que nos é mais precioso, como os exemplos de Abraão e Raabe demonstram (Tiago 2). Deixando de considerar a santificação como sinal da eleição para a vida eterna e adotando a fé como esse sinal, adotam uma base subjetiva para a segurança de salvação e correm o risco de se enganarem quanto à sua experiência religiosa, pois desta forma, podem se considerar salvos mesmo que não haja sinais visíveis da santificação entre eles.

3. A santidade é experimental – com isso quero dizer que podemos experimentá-la. Podemos viver, sentir e experimentar a vitória sobre as tentações interiores e exteriores. Sentimos e experimentamos grande gozo, alegria e deleite nas coisas de Deus. Sei que muitos vão se espantar com isso, mas declaro acreditar que reações físicas como tremer, chorar, emocionar-se, são perfeitamente válidas, se são resultado da pregação da Palavra de Deus na mente e no coração. Neo-ortodoxos tendem a considerar toda manifestação religiosa emocional como pentecostalismo, esquecidos de que a tradição reformada à qual dizem pertencer reconhece que a ação graciosa do Espírito na santificação por vezes produz efeitos profundos em nossa estrutura emocional. Eu sou contra emocionalismo e a manipulação e exploração das emoções. Mas, já chorei de alegria diante de Deus ao meditar na sua graça, já solucei amargamente, prostrado, por causa dos meus pecados, já senti uma paz que ultrapassa qualquer descrição ao enfrentar grandes tentações. O processo de santificação inevitavelmente passa pelas emoções – não é somente uma coisa da mente. E isso não é pietismo e nem pentecostalismo, como geralmente os neo-ortodoxos pensam.

4. A santidade precisa da prática devocional – Eu ainda acredito, depois de todos esses anos de crente, de pastor e professor de interpretação bíblica, que a leitura bíblica diária, junto com meditação e oração a Deus, são meios indispensáveis para nos santificarmos (Salmo 1). Não sei como muitos conseguem passar dias e dias sem ler a Palavra de Deus, sem meditar nela e buscar a Deus em oração. Quando por algum motivo deixo de fazer minhas devoções diárias, sinto o velho Adão fortalecer-se dentro em mim. Perco a alegria e o deleite na oração. Meu coração começa a se endurecer, meus sentidos espirituais começam a se embotar. O pecado deixa de ser odioso e começa a ser mais atraente. Eu nunca havia entendido até alguns anos passados porque neo-ortodoxos adotam uma ordem de culto extremamente litúrgica. Hoje, penso que descobri. Se não temos prática devocional e se tiramos o poder prático do Evangelho em nossas vidas, temos de transferir a dinâmica da santificação para outra esfera – e no caso, um culto extremamente formal e litúrgico. Não sou contra um culto litúrgico. Sou contra o “liturgismo” que aparece como substituto de uma vida devocional diária e do processo de santificação.

5. A santificação pressupõe que Deus fez e faz milagres neste mundo – A santificação bíblica pressupõe a realidade de três milagres. Primeiro, a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte, mediante sua ressurreição física, literal e histórica de entre os mortos. É somente mediante nossa união com o Cristo ressurreto e exaltado que temos o poder para vencer o pecado em nós. Segundo, a operação do Espírito regenerando o pecador, dando-lhe uma nova natureza e implantando nele o princípio da nova vida em Cristo. Sem regeneração, não pode haver santificação. A velha natureza pecaminosa não pode santificar-se. É preciso uma nova natureza e somente um ato miraculoso, criador, de Deus a implanta no pecador. Terceiro, a ação da Providência de Deus, que diariamente impede que sejamos tentados mais do que podemos resistir, subjugando Satanás, subjugando nossas paixões e nos mantendo no caminho da santidade. A neo-ortodoxia tende a lançar todos os atos miraculosos de Deus para a heilsgeschichte, um nível de existência que eles inventaram, que é fora desse mundo. Portanto, quem realmente não crê na ação miraculosa de Deus na historie, no mundo real, não conhece o que é a regeneração, a união mística com Cristo e a vitória diária sobre o pecado.

6. A santificação precisa de referenciais morais objetivos e fixos -- Sem eles, a santificação descamba para o misticismo, pragmatismo, e paganismo. O referencial seguro do caminho da santidade é a Palavra de Deus, nossa única regra de fé e prática. Ela é lâmpada para meus pés e luz para meus caminhos (Salmo 119.105). A neo-ortodoxia vê a Bíblia, não como a Palavra de Deus, mas como o testemunho humano escrito e falível a essa revelação. Deus só me fala pela Bíblia num encontro existencial, cujo conteúdo será determinado pela minha necessidade naquele momento. Fica difícil dizer não ao pecado, mortificar as paixões, rejeitar as tentações, buscar a verdade, a pureza e a justiça quando não temos certeza que essas coisas são certas e que são a vontade de Deus para nós a todo momento. Uma Bíblia falível, muda, cheia de erros, é um guia inseguro e não-confiável na senda do Calvário.

“Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12.14).

Veja esses posts sobre a Neo-Ortodoxia

Fonte: [ O Tempora, O Mores! ]
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Para Quem Pensa Estar em Pé (II)

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Por Augustus Nicodemos Lopes

Aqui vai o novo post desta série "Para quem pensa estar em pé". O primeiro abordou vários princípios sobre santificação. Aqui trato de outros igualmente importantes.

Embora eu tenha sido criado num lar presbiteriano e numa igreja presbiteriana onde as doutrinas características do presbiterianismo reformado eram pregadas com certa regularidade, revoltei-me contra essas doutrinas quando retornei ao Evangelho em 1977, depois de vários anos afastado de Deus e da Igreja. Influenciado pela leitura das obras de Charles Finney e João Wesley, combati a ferro e fogo, com zelo de novo convertido, não somente os cinco, mas todos os pontos do calvinismo.

Foi um batista reformado, Charles Spurgeon, com sua exposição bíblica da doutrina da eleição, quem abriu meus olhos para que eu passasse a aceitar com regozijo a fé reformada. Faminto, passei a devorar a literatura reformada disponível. Mais tarde, fazendo meu mestrado na África do Sul, conheci a obra de Martyn Lloyd-Jones e dela para a literatura puritana, foi um breve salto.

Amo a literatura produzida pelos antigos puritanos. Sólida, bíblica, profunda, muito pastoral e prática. A santidade defendida e pregada pelos puritanos aqueceu meu coração e se tornou o ideal que eu decidi perseguir até hoje. Um breve resumo do pensamento puritano sobre a santidade está na Confissão de Fé de Westminster, no capítulo SANTIFICAÇÃO:

I. Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um novo coração e um novo espírito, são além disso santificados real e pessoalmente, pela virtude da morte e ressurreição de Cristo, pela sua palavra e pelo seu Espírito, que neles habita; o domínio do corpo do pecado é neles todo destruído, as suas várias concupiscências são mais é mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e mais vivificados e fortalecidos em todas as graças salvadores, para a prática da verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá a Deus.
II. Esta santificação é no homem todo, porém imperfeita nesta vida; ainda persistem em todas as partes dele restos da corrupção, e daí nasce uma guerra contínua e irreconciliável - a carne lutando contra o espírito e o espírito contra a carne.
III. Nesta guerra, embora prevaleçam por algum tempo as corrupções que ficam, contudo, pelo contínuo socorro da eficácia do santificador Espírito de Cristo, a parte regenerada do homem novo vence, e assim os santos crescem em graça, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.

Era esse conceito de santificação que eu gostaria de ver difundido como sendo o conceito reformado. Contudo, recentes influências dentro do campo reformado, algumas delas chamadas de “neopuritanismo”, têm criado alguma confusão sobre o assunto.

Conforme escrevi num post anterior, o termo “neopuritanos” tem sido usado para designar os adeptos de um movimento recente no Brasil que inicialmente visava apenas resgatar a literatura dos puritanos e difundir seus ensinamentos em nosso país. Com o tempo, o movimento passou a usar determinadas doutrinas e práticas como identificadoras dos verdadeiros reformados, tais quais o cântico exclusivo de salmos sem instrumentos musicais no culto, o silêncio total das mulheres no culto, a interpretação de “o perfeito” em 1Coríntios 13.8 como se referindo ao cânon do Novo Testamento (posição contrária à de Calvino), uma aplicação rigorosa e inflexível do princípio regulador do culto e outros distintivos semelhantes. Nem todos os que adotam alguns destes pontos podem ser considerados neopuritanos, para ser justo. Mas, sempre há o grande risco de que se caia na tentação de associar a santidade com esses pontos. Sinto que os seguintes comentários poderiam ajudar a esclarecer o assunto.

1. A santidade deve ser buscada ardorosamente sem, contudo, perder-se de vista que a salvação é pela fé, e não pela santidade – Muitos seguidores modernos dos puritanos tendem à introspecção e a buscar a certeza da salvação dentro de si próprios, analisando as evidências da obra da graça em si para certificar-se que são eleitos. Não estou dizendo que isso está errado. A salvação é pela fé e, no meu entendimento, a certeza dela está ligada ao processo de santificação. Contudo, puritanos de todas as épocas correm o risco de confundir as duas coisas. Se a busca contínua pela santidade não for feita à luz da doutrina da justificação pela graça, mediante a fé, levará ao desespero, às trevas e à confusão. Quanto mais olhamos para dentro de nós, mais confusos ficaremos. “Enganoso é o coração, mais que todas as coisas; e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (Jeremias 17.9) Não estou descartando o exame próprio e a análise interior de nossos motivos. Apenas estou insistindo que devemos fazer isso olhando para Cristo crucificado e morto pelos nossos pecados. Somente conscientes da graça de Deus é que podemos prosseguir na santificação, reconhecendo que esse processo é evidência da salvação.

2. A santidade não se expressa sempre da mesma forma; ela tem elementos culturais, temporais e regionais – Sei que não é fácil distinguir entre a forma e a essência da santidade. Para mim, adultério é pecado aqui e na China, independentemente da visão cultural que os chineses tenham da infidelidade conjugal. Contudo, coisas como o uso do véu pelas mulheres me parecem claramente culturais. Quero insistir nesse ponto. A santidade pode se expressar de maneira contemporânea e cultural, não está presa a uma época ou a um local – Sei que muitos modernos puritanos negarão que desejam recuperar o estilo dos antigos puritanos da Inglaterra, Escócia, Holanda e Estados Unidos. Contudo, pontos como a insistência no uso do véu, no silêncio absoluto das mulheres no culto, no cântico de salmos à capela, na extrema seriedade dos cultos e do comportamento, a aversão ao humor, me parecem muito mais traços de uma época já passada do que essenciais teológicos. Especialmente quando a argumentação exegética para defendê-los carece de melhor fundamentação.

3. A santidade pessoal pode existir mesmo em um ambiente não totalmente puro – Eu acredito que chega um momento em que devemos nos separar daqueles que se professam irmãos, mas que vivem na prática da iniqüidade (1Coríntios 5). Não creio que devamos sacrificar a verdade no altar da pretensa unidade da Igreja. Se queremos a santidade, devemos estar prontos para arrancar de nós o olho, a mão e o pé que nos fazem tropeçar. Contudo, creio que há um caminho a ser percorrido antes de empregarmos a separação como meio de preservar a santidade bíblica. Sei que os santos são chamados a se separar de todo mal, inclusive dos pecadores (Salmo 1). Mas a separação bíblica é bem diferente daquela defendida por alguns puritanos modernos, que têm dificuldade de conviver inclusive com outros reformados dos quais discordam em questões que considero absolutamente secundárias. Podemos ser santos dentro de uma denominação ou de uma igreja local que não sejam, de acordo com as marcas da Igreja, uma igreja completamente pura. Sei que não é fácil, mas teoricamente posso ser santo dentro de Sodoma e Gomorra. Posso ser santo na minha denominação, mesmo que ela abrigue gente de pensamento divergente do meu. Não preciso necessariamente me separar como indivíduo para poder ser santo, especialmente se as alternativas de associação forem raras ou inexistentes.

4. A santidade pode ocorrer mesmo onde não haja plena ortodoxia – Sei que esse ponto é difícil para alguns puritanos modernos. Por incrível que pareça, a tolerância e a misericórdia marcaram os puritanos ingleses do século XVII. Foi somente a fase posterior do puritanismo que lhe deu a fama de intolerância. John Owen, o famoso puritano, pregou em 1648 um extenso sermão no Parlamento Britânico, na Câmara dos Comuns, intitulado “Sobre Intolerância”, no qual defendeu, mais uma vez, a demonstração do amor cristão e a não-intervenção dos poderes governamentais nas diferenças de opiniões eclesiásticas (Works, VIII, 163-206). O neo-puritanismo tende a ver com desconfiança a genuinidade da experiência cristã de arminianos e pentecostais. Para mim, a graça de Deus é muito maior do que imaginamos e o Senhor tem eleitos onde menos pensamos. Assim, creio que exista santidade genuína além do arraial puritano. Não estou negando a relação entre doutrina correta e santidade. O Cristianismo bíblico enfatiza as duas coisas como necessárias e existe uma relação entre elas. Contudo, por causa da incoerência que nos aflige a todos, é possível vivermos mais santamente do que a lógica das nossas convicções teológicas permitiria. Cito Owen mais uma vez:

A consciência de nossos próprios males, falhas, incompreensões, escuridão e o nosso conhecimento parcial, deveria operar em nós uma opinião caridosa para com as pobres criaturas que, encontrando-se em erro, assim estão com os corações sinceros e retos, com postura semelhante aos que estão com a verdade (Works, VIII, 61).

Acredito que a teologia reformada é a que tem melhores condições de oferecer suporte doutrinário para a espiritualidade, a santidade e o andar com Deus. Os reformados brasileiros são responsáveis por mostrar que a teologia reformada é prática, plena de bom senso, brasileira e cheia de misericórdia.

Fonte: [ O Tempora, O Mores! ]
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