Rudolf Bultmann e a desmitologização

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Por Jonathan Silveira


Quando se pensa em teologia liberal, o nome do teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884-1976) talvez seja o que mais se destaque como ícone deste movimento, embora ele mesmo negasse isso.

No entanto, ao se considerar que a estrutura teológica do liberalismo é marcada pela utilização de princípios humanistas como forma de se reinterpretar as Escrituras, desafiando, assim, sua autoridade e relativizando-a, não restam dúvidas de que Bultmann está entre aqueles que se desviam da ortodoxia protestante.

Dentre suas diversas ideias teológicas, Bultmann é mais popularmente conhecido por sua “desmitologização”. Para o teólogo alemão, os eventos narrados no Novo Testamento marcados pelo sobrenatural deveriam ser lidos e interpretados à luz da mitologia. Milagres e eventos sobrenaturais, portanto, não deveriam ser entendidos como eventos históricos, mas como histórias mitológicas que devem ser eliminadas a fim de chegarmos às verdades que estariam inseridas por detrás delas. Daí o nome “desmitologização”. Nas palavras de Bultmann,

“Ninguém que seja adulto o suficiente para pensar por conta própria imagina que Deus possa habitar um céu situado em algum lugar. Não existe mais céu algum no sentido tradicional da palavra. O mesmo se aplica ao inferno no sentido de um submundo mítico localizado debaixo dos nossos pés. Portanto, a história segundo a qual Cristo desceu ao inferno e subiu ao céu deve ser descartada. Não podemos mais esperar pelo retorno do Filho do Homem nas nuvens ou acreditar que os fiéis o encontrarão nos ares”.[1]

Nota-se que se trata de um discurso humanista cujo pressuposto é o racionalismo – bandeira orgulhosamente ostentada pelo movimento iluminista que influenciou diretamente a teologia liberal.

Acreditar que Jesus nasceu de uma virgem, que andou sobre as águas, que transformou água em vinho e multiplicou pães e peixes, que realizou curas e expulsou demônios, que morreu, ressuscitou e ascendeu aos céus etc., é simplesmente obscurantista e irracional. O homem moderno, diria Bultmann, já progrediu o suficiente nos campos da filosofia e da ciência a ponto de saber que as histórias contidas nas Escrituras não passam de mitos.

A pergunta que surge diante disto é: É possível excluir o sobrenatural e ainda assim conservar a essência do cristianismo? É possível excluirmos a divindade de Cristo ou a sua ressurreição física e ainda nos autodenominarmos cristãos? A resposta a estas perguntas é um sonoro não. Dizer o contrário seria o mesmo que dizer que uma pessoa pode continuar sendo ateia, mesmo que acredite em milagres. Negar o sobrenatural é negar o cristianismo. O milagroso, o sobrenatural, o transcendente, são indissociáveis da pregação do evangelho. Portanto, o evangelho é isto e não menos do que isto. O milagroso e o sobrenatural estão entrelaçados ao próprio registro das Escrituras. Remova-os e não se tem cristianismo, mas apenas uma filosofia baseada em subjetivismos e em experiências como qualquer outra. É preciso ser intelectualmente desonesto ou ingênuo demais para não perceber isso nas Escrituras. Assim como no conto “A Roupa Nova do Rei”, os teólogos liberais acreditam que estão majestosamente vestidos quando, na verdade, estão vergonhosamente nus. Como disse C. S. Lewis:

“Tais homens pedem-me que eu creia que eles mesmos podem ler nas entrelinhas de textos antigos; a evidência é sua própria inabilidade para ler (muito menos discutir) as próprias linhas. Afirmam ver sementes de samambaias e não podem ver um elefante a dez metros, à luz do dia.”[2]

Não obstante a relação orgânica entre a mensagem do evangelho e o sobrenatural que pode ser facilmente verificada na leitura do Novo Testamento, não há bons motivos para crer que o pressuposto racionalista de Bultmann seja plausível, uma vez que não há bons motivos para crer que milagres são impossíveis. Uma vez que se admita a existência de um Deus transcendente, criador de todas as coisas, por que não acreditar que Ele poderia a qualquer momento intervir no universo, causando eventos sobrenaturais? As leis naturais são descritivas e não prescritivas. Afirmações sobre o que foi observado até agora não acarretam logicamente afirmações sobre o futuro. Não se pode dizer que a natureza é uniforme aqui e agora e concluir que provavelmente é uniforme em toda parte. Neste sentido, G. K. Chesterton tem um insight brilhante, como é de costume – a citação é longa, mas digna de ser inserida:

“Aqui reside a perfeição peculiar de tom e verdade dos contos infantis. O cientista diz: ‘Corte o pedúnculo, e a maçã cairá’; mas diz isso calmamente, como se uma ideia de fato levasse à outra. A bruxa dos contos de fada diz: ‘Toque a corneta, e o castelo do ogro cairá’; mas ela não diz isso como se fosse alguma coisa em que o efeito obviamente surgisse da causa. Sem dúvida ela já deu esse conselho a muitos heróis e viu muitos castelos caírem, mas ela não perde nem o espanto nem a razão. Sua cabeça não se perturba tentando imaginar uma conexão mental necessária entre uma corneta e a queda de uma torre. Mas os cientistas quebram a cabeça até conseguirem imaginar uma conexão mental necessária entre uma maçã que deixa o galho e uma maçã atingindo o chão. Eles realmente falam como se tivessem descoberto não apenas um conjunto de fatos maravilhosos, mas também uma verdade ligando esses fatos. Falam como se a ligação de duas coisas fisicamente estranhas as conectasse filosoficamente. Sentem que, pelo fato de uma coisa incompreensível sempre vir depois de outra incompreensível, as duas de certo modo constituem uma coisa compreensível. Dois enigmas negros constituem uma resposta branca. [...] Quando nos perguntam por que os ovos se transformam em pássaros ou por que as frutas caem no outono, devemos responder exatamente como a fada madrinha responderia se Cinderela lhe perguntasse por que os ratos se transformam em cavalos ou por que as roupas dela desapareceram depois da meia-noite. Devemos responder que é MÁGICA. Não é uma ‘lei’, pois não entendemos sua fórmula geral. Não é uma necessidade, pois, embora contemos com esse tipo de acontecimento na prática, não temos o direito de dizer que ele deve sempre acontecer. [...] Todos os termos usados nos livros de ciência, ‘lei’, ‘necessidade’, ‘ordem’ e assim por diante, são realmente não-intelectuais, porque pressupõem uma síntese interior, que nós não possuímos. As únicas palavras que sempre me satisfizeram como descrições da natureza são os termos usados nos contos de fada, ‘sortilégio’, ‘feitiço’, ‘encantamento’. Eles expressam a arbitrariedade do fato e do mistério. Uma árvore dá frutos porque é uma árvore mágica. A água corre morro abaixo porque está enfeitiçada. O sol brilha porque está enfeitiçado. Eu nego totalmente que isso seja fantástico ou mesmo místico. [...] essa linguagem dos contos de fada sobre as coisas é simplesmente racional e agnóstica. É a única maneira de expressar com palavras minha percepção clara e definida de que uma coisa é totalmente distinta da outra; de que não há nenhuma ligação lógica entre voar e botar ovos. É o homem que fala de ‘uma lei’ que nunca viu que é místico. Ou melhor, o cientista ordinário é estritamente um sentimental. Um sentimental no sentido essencial, de estar mergulhado em meras associações que o vão carregando. Ele viu tantas vezes pássaros voando e botando ovos que sente como se devesse existir alguma fantástica, delicada ligação entre as duas ideias, quando não há nenhuma”.[3]

Como vemos, seja por motivos hermenêuticos, seja por motivos filosóficos, Bultmann está errado. Bultmann não melhorou o cristianismo, mas simplesmente criou outra religião. Ao “desmitologizar”, Bultmann exaltou o homem e rebaixou Deus. Preocupou-se com o bem-estar da razão cega e desconsiderou a fé que tudo vê.

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Notas:
[1] Citado por Ed. L. Miller e Stanley J. Grenz em Teologias contemporâneas. Ed. Vida Nova: São Paulo, 2013. p. 54.
[2] Citado por John Frame em Apologética para a glória de Deus – Uma introdução. Ed.Cultura Cristã: São Paulo, 2010. p. 105.
[3] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Ed. Mundo Cristão: São Paulo, 2008. p. 84-89.

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Sobre o autor: Jonathan Silveira é advogado e seminarista na Escola de Pastores da Primeira Igreja Batista de Atibaia, São Paulo. Dedica-se ao estudo da apologética e da filosofia e é coordenador do ministério “Tuporém”. 

Fonte: Tuporém
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