Resposta ao Silas Daniel - Ainda Sobre Luteranismo e Monergismo

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Silas Daniel publicou mais um texto em resposta às minhas postagens. Neste, não há nada de novo; o autor tenta clarificar algumas questões, especialmente sobre a relação de Lutero com o sinergismo de Melanchthon e alguns vocábulos empregados. Comento apenas as questões principais – já que o reverendo luterano Daniel Branco já respondeu ao texto com profundidade, numa nova postagem publicada na página da Congregação Luterana da Reforma.

Silas insiste no fato de Lutero, aparentemente, condescender com o sinergismo de Melanchthon (sem levar em conta que o sinergismo deste só se tornou explícito dois anos após a morte do primeiro), como se isso provasse que houve algum tipo de atenuação no monergismo do reformador alemão. Mas o autor não responde efetivamente às questões levantadas nos dois textos escritos por Daniel Blanco, nem as do meu último texto sobre Lutero, insistindo, a partir de uma opinião bem peculiar, baseada em inferências, que Lutero suavizou sua posição em Da vontade cativa. O leitor deve notar que estas afirmações da parte de Silas são feitas sem citação a nenhuma fonte primária que corrobore tal posição (e ele não cita nem uma vez obras de referência sobre a teologia da Reforma, como as obras de Henri Strohl, Timothy George ou Paul Althaus). De qualquer forma, um exemplo de fonte primária talvez baste para mostrar a fragilidade de sua posição: de forma completamente oposta ao que o autor opina, Lutero escreveu a Wolfgang Capito, em 9 de julho de 1537, que nenhum de seus livros mereceria ser preservado, com a exceção de seu Catecismo Menor e do De servo arbítrio (LW 50, p. 172-173).

Vou ficando com a impressão de que é muito mais fácil por parte dos arminianos afirmar, sem provas, que supostamente houve mudança ou abrandamento no pensamento do reformador alemão do que interagir com a vigorosa interpretação monergista que ele ofereceu ao texto bíblico, não só em Da vontade cativa, mas em suas preleções à Epístola do Bem-aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos e no Comentário à Epístola aos Gálatas. A propósito, o leitor pode conferir em minha última postagem, O luteranismo confessional e o monergismo (publicada no Bereianos), a citação inequívoca de Lutero sobre a predestinação soberana e graciosa, em seu prefácio à epístola aos Romanos, e publicada segundo a versão revisada no último ano de sua vida.

Como Silas Daniel parece não entender o princípio de igreja confessional, ele insiste em citar alguns escritores (me parece incorrendo no argumento ad verecundiam) para afirmar que a tradição luterana se afastou do monergismo do reformador – e, mais uma vez, é preciso destacar, tal conclusão se dá a partir da citação de fontes secundárias. Ele não cita nenhuma vez qualquer um dos documentos confessionais luteranos reunidos no Livro de Concórdia (o que fiz em O luteranismo confessional e o monergismo) para apoiar sua opinião sobre a tradição luterana.

Para tornar clara a questão: em igrejas confessionais, como as igrejas da tradição reformada, é perguntado aos candidatos ao ministério pastoral: “Recebeis e adotais sinceramente a Confissão de Fé e os Catecismos desta Igreja, como fiel exposição do sistema de doutrina ensinado nas Santas Escrituras?” Espera-se, como resposta, que estes afirmem solenemente “sua crença nas Escrituras Sagradas como a Palavra de Deus, bem como a sua lealdade à Confissão de Fé” e aos Catecismos como fiéis resumos do ensino bíblico – e que estes se mantenham firmes neste santo compromisso. Assim sendo, para as tradições confessionais, o que determina o que estas creem são seus documentos confessionais, não a posição de seus teólogos, mesmo dos mais representativos.

Por interpretar a história da controvérsia sobre a soteriologia em termos anacrônicos, reduzindo as alternativas em “calvinismo” e “arminianismo” (problema já tratado em detalhes em Sobre arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão, também publicado no Bereianos, e de passagem em O luteranismo confessional e o monergismo), o autor não consegue entender que a tradição luterana é uma terceira interpretação da soteriologia, mas não menos confessionalmente monergista que a tradição reformada.

Sobre o uso da expressão “mecânica da salvação”, minha crítica ao uso da mesma se dá por tal ideia sugerir a noção de graça ex opere operato, reduzindo a salvação a um sistema, ou ao recebimento mecânico da salvação (como na tradição pelagiana, com sua linguagem do tipo “aceitar a Jesus”, “tomar uma decisão por Cristo”, etc.). O fato da expressão “mecanismo da salvação” (e não “mecânica”) ter sido citada por Lloyd-Jones (uma única vez na palestra O que é um evangélico, em contraponto a “método de salvação”) é indiferente. Silas é livre para usar a expressão que lhe convier. A mim me parece que falar da livre graça de Deus é mais apropriado e bíblico (diga-se de passagem, esta última expressão é encontrada, de forma recorrente, em vários dos sermões de John Wesley).

Sobre o uso dos termos “semipelagianismo” e “semiagostinianismo”, deve-se afirmar que não atribuímos significado arbitrário a estes vocábulos, usando-os segundo nossas preferências. Eles devem ser referidos a partir dos dicionários teológicos e livros-textos consagrados, assim como de seu uso na história da teologia. Neste caso, referenciei tanto a diferença entre semipelagianismo e semiagostinianismo (que julgo importante, já que as duas interpretações pressupõem inícios diferentes para a salvação: a primeira, a partir da vontade, que será assistida por Deus; a segunda, atribuindo-a a Deus, que coopera com a vontade), como o fato de Agostinho e Próspero serem considerados autores “medievais”. Neste caso, o autor insiste na datação tradicional para se evadir de que houve de fato uma tradição monergista na Idade Média, e ela começou cedo. Para relembrar, Silas Daniel havia afirmado em seu texto publicado em O Obreiro Aprovado de que não teria havido ninguém que ensinou a doutrina da predestinação entre Agostinho e a Reforma, afirmação que ele corrigiu posteriormente. Ele, inclusive, afirmou naquela revista que os sínodos de Quiercy e Valença ensinaram “a predestinação pela presciência divina”, um óbvio equívoco de interpretação que fica evidente para aqueles que consultarem as fontes originais, na edição bilíngue de Denzinger-Hünerman (Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral), e citadas em meu ensaio Sobre arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão (onde o leitor encontrará também a citação dos artigos principais das decisões do Sínodo de Orange sobre a soteriologia).

Por fim, as várias citações de Próspero a favor daquilo que é chamado de “universalismo hipotético”, com que o autor encerra seu último texto, não provam nada. As citações não demonstram que tal posição é incompatível ou é uma ruptura com o monergismo que ele herdou de Agostinho, e do qual foi firme defensor; Próspero também foi a influência determinante no Sínodo de Orange (por meio da obra Sententiae ex Augustino delibatae), que condenou o pelagianismo e “algumas doutrinas semi-pelagianas típicas, como aquela da initium fidei humana”, e que adotou “uma forma atenuada de agostinianismo” (Justo Gonzalez, Uma história do pensamento cristão, v. 2, p. 60-61).

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Autor: Franklin Ferreira
Divulgação: Bereianos

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O Luteranismo Confessional e o Monergismo
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