O que significa “sujeitar-se às autoridades” em Romanos 13.1?




Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais […] – Romanos 13.1

Paulo começa seu texto dizendo que todos devem se sujeitar às autoridades governamentais. Para compreendermos o que isto significa, precisamos primeiro observar quem ou o que são estas autoridades, e o que significa se sujeitar a elas. Na língua grega, Paulo não fala de autoridades governamentais, mas apenas de autoridades superiores. Nisto, alguns tentam argumentar que Paulo está falando de obediência a autoridades eclesiásticas[1] ou a autoridades espirituais[2]. Porém, nada disso se justifica no contexto do significado comum de “autoridades”, na descrição das funções tipicamente civis destas autoridades e dos comentários sobre cobrança de impostos que aparecem neste texto. Só podemos acreditar, de fato, que Paulo está falando de autoridades civis, governamentais.

Paulo usa um plural para falar das autoridades. Isto porque o sistema de governo Romano possuía o governo central em Roma, com o imperador, os governos provinciais, com governadores indicados pelo imperador ou senado, o sistema militar de Roma, que impunha autoridade. Muitos homens honrados e inteligentes têm visto no uso do plural “autoridades governamentais” uma indicação paulina para que não exista uma única hierarquia governamental, mas algum tipo de divisão de poderes, a fim de evitar a tirania ou a ditadura. Ainda que assumam que o texto não deixa claro qual modelo de pluralidade política devemos seguir, são propostas a Teoria da Divisão dos Poderes de Montesquieu, com o sistema de freios e contrapesos, como é aplicado no Brasil, ou as perspectivas de Alexis de Tocqueville acerca da descentralização e desconcentração. [3] Ainda que eu concorde com a validade da Divisão de Poderes e seja eu um entusiasta da Democracia, é exagerado acreditar que Paulo esteja fazendo qualquer apologia à não-unidade governamental. Ao citar a pluralidade de agentes de autoridade, o apóstolo está se referindo apenas às muitas pessoas que são agentes do governo despótico de Nero, e não propondo um modelo de governo. Por melhor que sejam nossas intenções, e por mais que nossas ideias estejam bem pautadas por todo o arcabouço da Teologia Sistemática, não podemos ir além do que está escrito e impor a determinado texto algo que de lá não provém.

Em quê sentido, então, Paulo nos ordena obedecer, em sujeição, às autoridades governamentais? Isto significa que se um vereador aparecer na minha casa dando ordens sobre como devo me vestir ou usar minhas finanças, eu devo a ele irrestrita submissão? Isto significa que se a presidente do país comissionar na televisão que todos pintemos as paredes de sua mansão, ou aparemos a grama de seu jardim, nós pecaríamos diante de Deus se a desacatássemos? Se você tem um primo governador, e ele chega na sua casa cantando de galo, você deve fazer tudo o que ele mandar? Devemos nos sujeitar às autoridades civis, diz Paulo. Não é isto que tal passagem significa?

Absolutamente não. Essa interpretação, que parece plausível à primeira vista, não se justifica quando percebemos que Paulo está falando dos líderes governamentais no exercício de sua função civil. Isto torna-se mais claro quando lembramos que naquela época, Roma vivia em um império onde Rex, Lex, ou seja, “o rei é a lei”. Quando o rei francês Luís XIV declarou que L’État c’est moi (“o Estado sou eu”), ele estava, de alguma forma, ecoando a realidade de todo governo não-plenamente constitucional: “a palavra do rei é soberana” (Eclesiastes 8:4). Os governantes e as próprias instituições governamentais se confundem numa amalgama só. Apenas com Samuel Rutherford, no século XVII, que teremos uma publicação cristã chamada Lex, Rex, com o subtítulo “A Lei é Rei”, evidenciando o padrão escocês e presbiteriano de governo, que via os governantes como servos de uma lei anterior a eles, e não como positivadores da legalidade. Ao percebermos este momento histórico romano, podemos compreender que Paulo não está falando de uma obediência irrestrita a cada governante como indivíduo, mas às autoridades governamentais como tal.

O modo como Paulo vai explicar esta sujeição deixa evidente seu interesse em uma obediência não ao indivíduo governante, mas à autoridade governamental no exercício de sua função. Podemos dizer porque a linguagem paulina está sempre relacionado à obediência às leis. Em Romanos 13.1-7, como Paulo vai desenvolver a ideia da submissão? O insubmisso é definido em termos de praticar a maldade (v. 3), não pagar os impostos (v. 7) e não temer e honrar os líderes (v. 7), estrutura esta que se repete em outro texto Paulino e até mesmo na fala de Pedro (Tito 3.1 e 1Pedro 2.13-14), onde sujeição sempre vem antes ou em paralelismo com obedecer às leis, não agindo como um malfeitor. Desta forma, poderíamos rescrever a ordenança paulina, trazendo o que foi escrito aos romanos debaixo de um império para os brasileiros em uma democracia representativa constitucional como “Todos devem obedecer a lei”.

Não estou, de forma alguma, defendendo a visão moderna de uma “lei” impessoal e abstrata completamente dissociada da figura do legislador. Eu não sou um jurista nem um leitor dedicado da teoria do direito. Creio, como leigo, na visão que me soa mais realista (e talvez, bíblica) de uma relação intrínseca entre a lei e a autoridade pessoal que a institui (ou que de algum modo tem o poder da coerção para exigir seu cumprimento). Nem mesmo estou tentando estabelecer um “limite” ao poder do governante, mas apenas deixar claro que a submissão se dá não ao indivíduo em qualquer mando e desmando de ordem pessoal, mas naquilo que o magistrado estabelece no exercício de sua função. Não há bem uma limitação no poder do magistrado nesta minha tentativa de reformulação moderna na leitura do texto, já que ele pode fazer com que suas vontades privadas se manifestem em forma de lei, caso queira e não haja nenhum limite para isto em seu contexto político. Não existe a “autoridade” separada da pessoa que a exerce, e talvez este texto de Romanos seja uma das melhores bases bíblicas para declarar isto. Minhas próprias incapacidades no estudo do Direito me impedem de lidar com este assunto de forma minimamente apropriada. Deixo esta nota apenas como insight aos juristas que me leem.

A pergunta que fica é: “Devemos obedecer as autoridades em tudo, quando elas estão no exercício de suas funções?”. Ponto de outra forma: “Devemos obedecer todas as leis?”. Essa questão será tratada no próximo texto de nossa série.

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Notas:
[1] E.g. NANOS, M. D. The Mystery of Romans: The Jewish Context of Paul’s Letter. Minneapolis: Fortress, 1996, p. 302-304, que vê referência aos líderes da sinagoga, e OGLE, A. B. “What Is Left for Caesar? A Look at Mk 12:13-17 and Rom. 13.1-7”, ThTa 35, 1978-1979, p. 254-264, que vê um relacionamento de “serviço-liderança da igreja”.
[2] As “autoridades” de Judas 8, no contexto, parece se referir a autoridades espirituais, já que todo o contexto posterior fala de anjos e demônios, e não de governantes. O contexto aqui em Romanos é outro.
[3] Por exemplo, NORTH, Gary. Cooperation and Dominion: An Economic Commentary on Romans. Harrisonburg, Virginia: Dominion Educational Ministries, Inc., 2007, p. 154-155.

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Autor: Pr. Yago Martins
Fonte: Teologia Política

Veja os outros textos da série, aqui!
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