A difusão do evangelho: o uso de Gênesis 1.28 em Colossenses 1.6

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Graças damos a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, orando sempre por vós, desde que ouvimos falar da vossa fé em Cristo Jesus, e do amor que tendes a todos os santos, por causa da esperança que vos está reservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da verdade do evangelho, que já chegou a vós, como também está em todo o mundo, frutificando e crescendo, assim como entre vós desde o dia em que ouvistes e conhecestes a graça de Deus em verdade” (Cl 1. 3-6).

Introdução

“A melhor defesa é um bom ataque”, é o que alguns dizem, e é certamente o que Paulo fez nessa carta. Um de seus propósitos era encorajar a igreja em Colossos a resistir ao falso ensino que se propagava entre eles. Pelo fato de ser ocasional, a carta aos Colossenses possui uma Cristologia elevada, por causa da redução funcional e menosprezo ontológico de Jesus Cristo que aquela heresia ensinava. Paulo a combate com veemência, e como é característico em suas cartas, o apóstolo deixa ecoar logo nas saudações e orações iniciais de suas cartas vários temas que irá desenvolver no corpo epistolar.    

Como podemos notar em 1.6, ao contrário daquele falso ensino, possivelmente circunscrito apenas em Colossos, a verdade do evangelho apostólico crescia e se multiplicava em todo o mundo.

O propósito deste artigo é tentar descortinar o significado das palavras “frutificar e crescer” (v.6). Através do desdobramento da revelação da redenção na história, iremos investigar esse “motif” ao longo das Escrituras, para nos aproximarmos com a maior precisão possível do que Paulo tinha em mente quando descreveu a atuação do evangelho nesses termos.

Frutificando e crescendo

Esta perícope possui uma estrutura concêntrica onde Paulo elabora a experiência dos Colossenses no evangelho, refletindo as circunstâncias em que eles ouviram o evangelho pela primeira vez (v. 7-8), e o poder transformador que opera não somente neles, mas em todo o “mundo” (v.6), este último consiste no centro dessa ação de graças (v. 3-8).

A linguagem de “frutificar e crescer” é uma reminiscência alusiva à história da criação em Gênesis. Deus ordena que a raça humana “frutifique e se multiplique” (Gn 1.28; cf. 1.22).

Gênesis 1.28
Colossenses 1.6

Crescei [auxanõ] e multiplicai-vos [plêthyno] e enchei a terra [...] e dominai sobre [...] toda a terra [pasês tês gês]” (LXX).

Frutificai [pârã] e multiplicai-vos [rãbâ] e enchei a terra [...] e dominai [...] a terra” (TM)

Em todo o mundo [panti tõ kosmõ], ela [a palavra da verdade, o evangelho] está frutificando [karpophoreõ] e crescendo [auxanõ]”.

Parece que Paulo se foca no texto hebraico (TM), ainda que a tradução da Septuaginta (LXX) seja viável. Dando um sentido mais literal, Paulo traduz “pãrâ” por “karpophoreõ” (frutificando) e “rãbâ” (multiplicar) por “auxanõ”. 
Podemos notar ainda que Paulo usa uma tradução própria, independente da LXX, reproduzindo a expressão “em toda a terra” por “em todo o mundo”.

Tendo definido os paralelos textuais, passamos agora a ver como esse “tema” de “frutificar e crescer” se desenvolve no Antigo Testamento.

“Frutificar e crescer” no Antigo Testamento

Analisaremos o uso e desenvolvimento de Gn 1.28 no Antigo Testamento, e perceberemos que esse é um tema Bíblico-teológico. 

Após o dilúvio esse mandato é reiterado a Noé e sua família:

“...povoem abundantemente a terra e frutifiquem, e se multipliquem sobre a terra” (cf. 9.1, 7).

A mesma linguagem é usada posteriormente na promessa de Deus a Abraão e aos patriarcas:


E Deus Todo-Poderoso te abençoe, e te faça frutificar, e te multiplique, para que sejas uma multidão de povos; E te dê a bênção de Abraão, a ti e à tua descendência contigo, para que em herança possuas a terra de tuas peregrinações, que Deus deu a Abraão” (Gn 28.3-4).
Disse-lhe mais Deus: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim, uma multidão de nações sairá de ti, e reis procederão dos teus lombos” (Gn 35.11).

O povo de Israel alcançou parcialmente essa benção no Egito:

E me disse: Eis que te farei frutificar e multiplicar, e tornar-te-ei uma multidão de povos e darei esta terra à tua descendência depois de ti, em possessão perpétua.” (Gn 48.4)
E os filhos de Israel frutificaram, aumentaram muito, e multiplicaram-se, e foram fortalecidos grandemente; de maneira que a terra se encheu deles.” (Ex 1.7)

Entretanto, Israel pecou e continuou a pecar, e por causa disso sofreu o julgamento e a dispersão. E é no exílio que a fórmula reaparece e Deus promete reunir Seu povo novamente:

E eu mesmo recolherei o restante das minhas ovelhas, de todas as terras para onde as tiver afugentado, e as farei voltar aos seus apriscos; e frutificarão, e se multiplicarão” (Jr 23.3).

O uso de Gênesis 1.28 em Colossenses 1.6

Uma dúvida pode surgir quanto a essa alusão: Qual a relação entre os textos se Gn 1.28 se refere ao aumento dos seres humanos em “toda a terra” e ao domínio deles sobre ela, ao passo que Cl 1.6 refere-se a palavra do evangelho “frutificando e crescendo em todo o mundo” (Beale, 2014)? Paulo estaria apenas se utilizando do texto com fins retóricos sem se importar com o sentido e contexto original de Gn 1.28?

Para uma resposta satisfatória, precisamos adentrar com maior profundidade ao texto. Gn 1.26-28 é um mandato para Adão refletir a imagem de Deus, uma reflexão implicitamente ontológica e explicitamente funcional (Beale, 2014). Na criação de Adão e Eva, Deus os dotou com capacidades internas para que fossem capazes de sujeitar, dominar e encher a terra com a glória de Deus. Reproduzir filhos para se unirem nessa reflexão da imagem Divina fazia parte do mandato da sujeição/dominação.

De acordo com G. K. Beale, Adão, Eva e sua prole seriam vice-regentes que agiriam como filhos obedientes de Deus, refletindo seu glorioso e pleno reinado sobre a terra. O que se evidencia já em Gn 1 – 3, sendo também relevante para Colossenses 1.6 (e 10), é que a obediência à palavra de Deus era crucial para realizar a incumbência de Gn 1.26,28 (2014, p. 1042).

Adão, Eva e sua descendência deveriam refletir a imagem de Deus e espalhar Sua glória por toda a terra. Mas como sabemos, tanto o primeiro casal como sua descendência falhou miseravelmente.

Paulo se apropria de forma alusiva a um dos enredos mais importantes da história da redenção. O apóstolo foca na função da palavra de Deus em Gn 2-3 em relação ao cumprimento da comissão adâmica (ibid., p. 1043). A palavra da verdade finalmente começou sua expansão global, conforme Adão foi ordenado a fazer. Não somente no mundo, mas “nos” Colossenses, que foram “libertos do império das trevas” (1.13), o engano e domínio da antiga serpente já não opera em seus corações.

Assim vemos que Paulo não está forçando o texto de Gênesis, antes o interpreta de uma perspectiva histórico-salvífica, e da culminação do evento Cristo. De fato, Jesus é o novo e último Adão, o portador da imagem de Deus (Cl 1.15; 3.10), e os cristãos, pela fé n'Ele, são identificados com Ele através da união pessoal com Cristo.

O objetivo da comissão renovada em Cristo é espalhar a glória de Deus através de uma humanidade renovada (cf. N. T. Wright, 1986, p. 53-54). Como descendência espiritual do Adão escatológico, os fiéis, como participantes da nova criação inaugurada, dão inicio ao cumprimento do mandato outorgado ao primeiro Adão. 

Concluímos que o uso de Gn 1.28 em Cl 1.6 não é meramente analógico. Estamos diante de uma tipologia, pois a repetição da falha em cumprir a comissão de Gênesis apontava para uma humanidade escatológica que finalmente obedeceria ao mandato de Gênesis (Beale, ibid.). 

Conclusão

Concluo esse breve artigo com algumas aplicações práticas. Em primeiro lugar, será oportuno uma análise pessoal do leitor sobre sua própria fé, à luz do verdadeiro evangelho. A fé espúria que se propaga no meio evangélico é fruto do falso evangelho que domina várias denominações. Nada além e nada aquém do puro evangelho bíblico/apostólico deve ser crido. Somente ele é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16). Porém crer num falso evangelho é correr em vão e por isso deve ser anátema mesmo se tiver uma suposta origem “angelical” (Gl 1.8). Em segundo lugar, devemos combater esses falsos evangelhos com o verdadeiro. Foi exatamente isso que Paulo fez. Quer fosse o falso evangelho destruindo os gálatas, ou a heresia corroendo Colossos, ou o triunfalismo dividindo Corinto, Paulo sempre estava lá, combatendo o engano da antiga serpente com a palavra da verdade. Ele mesmo diz que foi posto para defesa do evangelho (Fl 1.17). Todos nós temos esse mesmo dever que Paulo, e é por isso que Judas nos exorta a “batalhar pela fé que de uma vez por todas foi dada aos santos” (Jd 1.3). Em terceiro e último lugar, não devemos ficar apenas na defensiva, mas temos que partir para o ataque. E com isso quero chamar nossa atenção para o dever e responsabilidade de cada cristão em proclamar o evangelho em “todo o mundo”. Deus em Sua soberania usa meios para a difusão global de Sua Palavra. Paulo não poderia falar sobre o crescimento do evangelho se ele e os demais tivessem ficado quietos. Como vimos, somos o povo escatológico de Deus, novas criaturas nas quais a imagem de Deus se renova dia após dia em Cristo. E o propósito disso é espalhar a glória de Deus na face de Cristo, avançando o evangelho do reino neste mundo caído.  

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Bibliografia:
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Beale, G. K. Colossenses, em “O uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”, org. D. A. Carson e G. K. Beale. Vida Nova, SP, 2014.
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Lightfoot, J. B. Saint Paul’s Epistles to the Colossians and to Philemon. Grand Rapids: Zondervan, 1959 (da edição revisada de 1879).
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Moule, C. F. D. The Epistles to the Colossians and to Philemon. CGTC. Cambridge:Cambridge Univ. Press, 1968.
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Wright, N. T. Colossians and Philemon. TNTC. Grand Rapids: Eerdmans, 1986.

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Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos
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